por Urariano Mota
O que se passa com um homem quando caminha para a morte?
Vargas entrou no prédio quase de um salto, como quem entra no consulado em área livre da guerra civil. Subiu no elevador como as pessoas sem saída vão, e agora aperta a campa da advogada com a sua chama trêmula. Vida açoitada pelo vento em suas mãos. “Eu sou um homem”, e de tanto ódio pela tremedeira incontrolável, fecha os punhos, trinca a boca, pressiona os maxilares. “Eu sou um homem, porra. Eu não traio. Eu não trairei o que eu sou. Porra!”. E a porta se abre. À sua frente surge ela própria, a bela e ardente advogada Gardênia Vieira. Ela não é alta, nem suave ou feminina, quero dizer, naquele sentido de bailarina delicada de porcelana.
Pelo contrário, em vez de amparável, porque a sua fina louça podia quebrar, de Gardênia vem uma força moral que abriga, como tem abrigado mais de uma pessoa, físico e alma torturada no Recife. Mas além da fortaleza moral, de onde vêm a sua beleza e feminilidade? Era preciso vê-la para notar o que não se revela nos retratos. Gardênia olha firme e direto, como poucas mulheres usam e ousam olhar fundo em um homem, e nem por isso desperta o desejo mais carnal de sexo. De imediato, não. O desejo de amá-la viria espiritualizado, se podemos sofismar assim, quando à sua pequena altura, de olhar abrasante, associamos a coragem e os cadáveres que viu, denunciou, e o mundo abjeto contra o qual ela se indigna. Bem sei, ainda aqui não sou claro.
Quero dizer, o amor à mulher Gardênia Vieira vem não só misturado do respeito à pessoa, mas em essência à sua visitação aos cadáveres de socialistas torturados. Então, se permitem um português mais chulo, ela desperta um tesão que é fora da genitália. Um tesão do espírito.
Então Gardênia abre a porta e vê um jovem de cabelos crespos, assanhados, fronte suada e olhinhos miúdos, mas abertos além do normal.
– Doutora, eu preciso lhe falar urgente.
Vargas entra, olhando para trás. Gardênia fecha a porta, estica uma corrente de segurança no trilho.
– Sente-se. Pode falar.
Vargas desce para uma cadeira e se põe a gaguejar, um sintoma que nele é tensão e nervosismo, ele acha que não, acredita que é um tormento de palavras a se atropelarem na boca. A língua pesa, pouco flexível, como se anestesiada. Não lhe obedece:
– Dou-tô-tô-raaa!
– Calma. Fale devagar.
O que era pálido na face de Vargas enrubesce. Ele para a fala, inspira o ar com força e volta a iniciar mais lento, como lhe é possível:
– Dou-tôôra… Eu vou ser preso. Certe-eza.
– Por quê? Caiu algum conhecido seu?
– Nãao é…. é isso não. – E Vargas ganha uma fala retilínea, aos arrancos. – Só… só tem caído companheiro. E todo o mundo pensa que o culpado sou eu. Mas naão. A culpa, a entrega é de Daniel. Eu falava o contato pra Daniel e um companheiro caía. Eu sei, doutora! Eu tenho um primo que esclareceu pra mim. Daniel usa o carro de um torturador. E Daniel já notou que eu sei que ele é policial, doutora. Não tive como fingir, olhei pra cara dele e soube que ele estava mentindo. Doutora, eu tive que me controlar. Ele merecia um tiro na cara. Mas me controlei, não sei como. Acho que me controlei porque eu não queria acreditar que Daniel fosse infiltração. Mas agora não tenho mais dúvida. Vi Daniel na Rua da Aurora, com quem, doutora? Ele estava andando, conversando com um cara gordo, de óculos escuros, Fleury! Eu já vi foto desse assassino. Fleury está no Recife. Isso é missão, doutora. Fleury não sai de São Paulo pra fazer nada. Doutora, eu sou o próximo!
Então Vargas arregala os olhos a ponto de quase saltá-los das órbitas. Não era só medo, essa palavra que ele evitava falar como expressão de um estado vergonhoso. Impossível de reprimir, não era só medo de ser preso. Agora, enquanto fala da presença da repressão cruel no Recife, Vargas tem a intuição do mais grave que se reserva para ele. Não será só preso. Ele vai ser morto. Executado, depois de infindável tortura. Então Vargas se vê dias adiante, e a cara que antevê não é a dele, mas de alguém inchado, tão largo, que não caberá no caixão encomendado para a sua altura e peso.
Ele vê e recua com horror, bate com a mão no braço e espanta uma mosca. “Isso é superstição”, ele se fala ao expulsar a varejeira. Evita esmagá-la por nojo, primeiro. Depois, porque achatá-la seria sangrento, e isso lembra outra vez aquilo, a superstição de ver o próprio corpo, esmagado no chão. Se sobrevivesse a tal hora, Vargas perguntaria: “Por que os torturados morrem sempre pisados no chão?”. E Vargas espanta a varejeira, afasta a maldita do cadáver. Mas a mão do gesto não volta mais ao repouso. Põe-se a tremer do medo mais envergonhador. “Que canalhice é esta?”, ele se pergunta. E cala, em luta com a sua visão e a perda irreversível da serenidade.
Gardênia o olha e parece a Vagas sorrir. Mas não, Gardênia o vê com funda simpatia, como se vê um filho, um sobrinho, um jovem a quem ela deve orientar. Não lhe escapam as mãos trêmulas, os olhos aterrorizados, a testa suada, a voz que dá um descontínuo, mas que ela sabe nada ter de canto ou improviso. É a voz de tom grave que oscila para o choro, que o jovem procura retornar logo para a firmeza. “Por Deus, como são parecidos”, ela se diz. Outros perseguidos ela já havia visto nas mesmas circunstâncias. “Há os loucos, os enlouquecidos. Há os covardes, que se acovardam. Há os desesperados, que caminham para a morte”, ela escreverá num diário, em que completará: “Vargas era do terceiro tipo. Ele estava desesperado”, primeiro anotará numa linha do seu caderno íntimo. Ela olha para Vargas com simpatia, como se o conhecesse há muito, em outros corpos, mas em igual situação. E por isso lhe propõe uma saída, que Vargas não consegue ver na hora da aflição:
– Por que você não foge?
Vargas, na sala da advogada, tem momentos repentinos de surdez. Ele não entende o que acabou de ouvir. A sua preocupação na hora é espantar a mosca, ameaçar-lhe tapas, porque lhe repugna o sangue. No entanto, a mosca vai e volta, insistente. “Alguém está querendo me ver”, fala o povo ao se referir a moscas importunas. Mas para ele, não, ele afasta superstições, que se voltam contra a sua pessoa. Quem o quer ver, será Fleury? Ou o infiltrado Daniel? A mosca volta para o seu braço. Ele dá um soco no ar e se levanta.
– O que foi? – Gardênia pergunta. – Não acha melhor?
– O quê, doutora? Não entendi.
– Fuja agora. Fuja enquanto é tempo.
Desta vez ele ouve. E fica parado, sem resposta. Ele poderia responder que não tem para onde ir, que é um balconista de livraria, filho de mãe viúva, que a classe média não sabe nem imagina que os pobres não têm para onde ir. Mas ele sabe também que pode apelar para a solidariedade de companheiros. Os que não caem na covardia na necessidade. Mas ele vê um obstáculo mais sério e grave ao ouvir a pergunta repetida de Gardênia:
– Por que não foge?
– Eu não posso, doutora. Como ficará Nelinha? Ela é muito frágil. Eu não posso fugir e deixa-la. A repressão vai pra cima dela.
– Então fujam os dois. Fuja com a sua esposa.
– Mas não posso fugir com a nossa filhinha. Ela só tem um mês de nascida.
– Eu fico com a criancinha. Podem fugir, que eu fico com ela.
Vargas cai sobre a cadeira. Está comovido com a oferta e a generosidade de Gardênia. Tem os olhos úmidos.
– Muito obrigado, irmã – ele fala “irmã”, sem querer, porque Gardênia lhe parece agora uma das freiras da Igreja que se entregam de coração à luta. – Desculpe: doutora. Muito obrigado.
– Não tem de que se desculpar, todos somos irmãos.
– Muito obrigado, doutora. Mas não posso aceitar.
Vargas é um homem digno, mais de um militante lhe reconhece, até mesmo os que com ele possuem divergência política. Apesar dos seus arroubos, antipáticos, sectários, reconhecem: é um homem digno. Louco, parece louco às vezes, porque se expõe demais.
– Eu não posso aceitar, doutora.
– Por quê, rapaz? Corra. Eles vão te pegar. Fuja com a esposa.
– Eu não vou botar Nelinha numa aventura. Se me pegarem com ela, vão torturar nós dois. Nelinha é muito frágil, doutora.
E Vargas começa a ter a voz embargada, com um nó na garganta, porque louco era também o seu amor por Nelinha. Lágrimas começam a descer pela face, e ele vira o rosto de lado para não se mostrar também frágil, logo ele, que devia ser o forte, a fortaleza, o guardião da fragilidade de Nelinha. Mas as lágrimas são despudoradas, incontroláveis, porque no coração ele se fala que Nelinha foi a mulher que ficou a seu lado quando ninguém o queria, quando ele nada tinha para lhe dar, a não ser as sequelas de uma tuberculose, quando ele não passava de um fodido desempregado. E o amou como se ele fosse o último Vargas dos subúrbios recifenses.
Ela o chamava de meu querido animalzinho, e ninguém o sabia. “Calma, Vargas, para de ser sentimental. És um revolucionário. Levanta e luta”. Levanta e morre? Então lhe voltava o animalzinho, ao que ele respondia, “você é minha alfenim, o meu docinho de açúcar que ninguém vai quebrar”. Mas ninguém sabe, são sentimentos que se falam na fechada intimidade, porque são os ridículos do amor. Os outros são muito críticos, vão rir de nós, então Vargas nada pode falar que no mês passado quis ficar grávido com ela, para dividir aquela barriga tão grande para tão pequenininha mulher, então nasceu a beleza de Krupskaia, a futura noiva da revolução no Recife, Krupskaia, tão nova e merecedora de cuidados. A revolução é uma flor, meu bebezinho.
– Como é que posso fugir com Nelinha, doutora? – Vargas resmunga entre lágrimas. – Eles vão esmagá-la. Eu não vou sacrificá-la comigo. Nunca!
– Então você caminha sozinho para a morte. É isso?
Trecho do romance “A mais longa duração da juventude”, de Urariano Mota.
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