I. O Malandro. Nos compêndios de economia política, numa sociedade onde o modo de produção capitalista é hegemônico, existem duas classes, dois importantes agentes de produção antagônicos: o capital (que detém os meios de produção) e o trabalho (força laboral dos trabalhadores).
Com a intensificação da industrialização nos anos 1930, uma grande massa de trabalhadores migra do campo para a cidade nas áreas urbano-industriais, onde o populismo estatal é incapaz de incorporar ao sistema produtivo toda a população urbana em idade de trabalho. É nesse contexto de aclimatação capitalista que surge o jeitinho, o quebra-galho, o pistolão, a panelinha, a malandragem como instituições, formas de burlar o universalismo contido na ideologia burguesa, em oposição à identidade nacional de cada indivíduo.
No ensaio clássico “Dialética da Malandragem”, o mestre Antônio Cândido, ao analisar o romance “Memórias de um Sargento de Milícias”, desvincula a malandragem (traço de caráter da cultura brasileira) da organização econômico-social, demarcando a obra entre a correspondência dualista da malandragem literariamente figurada no romance e o comportamento malandro existente na realidade, flutuando entre as vagas da ordem (lícito) e desordem (ilícito).
II. O Ócio. Longe desse conceito romântico/econômico é que se apresenta o chamado “Malandro Oficial” ou com patente de oficialidade tão comum na atual horda militar palaciana, bem distinto da maioria da população obrigada a batalhar, a ingressar nos meios de produção e sobreviver à custa do suor do seu trabalho e exigências laborais codificadas.
O atual presidente da República, apenas dá continuidade à sua idolatria ao ócio iniciada desde a tenra infância de passarinhagem e estilingue, passando pela indolência nas escolas militares e prosseguindo na preguiça aquartelada, talkey?
Afinal de contas, que trabalhador conseguiria se aposentar com 33 anos de idade, com um salário respeitável de capitão após onze anos de aquartelamento “il doce far niente”? Como sabemos o gaudério transformado em presidente, conclui o curso de formação na AMAM em 1977, e em 1988 já estava transferido para reserva remunerada, fora dos quartéis, para assumir o posto de vereador do Rio de Janeiro, após abertura de processo militar, acusado de planejar a explosão de bombas em instalações militares. O espantoso é que anos mais tarde o pianíssimo Bolsonaro, costumeiro de tantas bravatices, tenha negado tudo ao então ministro do Exército, Leônidas Pires, o general a que acusara de frouxidão e de tratar os militares como se “vagabundos” fossem (sic).
III. A Pavulagem. Esticada a sua larga rede em consecutivos mandatos parlamentares, a sua malha de incursões pelos meandros do submundo do peculato e concussão das rachadinhas, compra suspeita de imóveis, uso indevido de verbas de gabinete para viagens pessoais e cartão corporativo (R$ 5,8 milhões gastos somente neste ano), além dos indícios do íntimo envolvimento com a milícia do Rio de Janeiro.
Os consecutivos mandatos de 1989 a 2019 (2 como Vereador e 7 como Deputado Federal), apenas reforçam a sua notória inação laboral, a fleuma ladina, com apenas um único projeto transformado em lei, em 1996, prorrogando benefícios fiscais para o setor de informática e automação, um mísero projeto após 30 anos de desfrute e gazetagem.
No brilhante trabalho acadêmico “Malandragem e Ordem Social (Um estudo da Autoridade Malandra através do Samba e da Literatura)”, tese de doutoramento de Rosenberg Fernando de Oliveira Frazão, o espaço de atuação do malandro está sempre envolto numa atmosfera de crise. É um ser completamente avesso a qualquer regra, pessoa ou instituição capaz de tolher ou ameaçar a sua liberdade, da qual não abre mão sobre nenhuma circunstância.
IV. A Farra da Mamata. É a expertise presidencial, a sua aversão ao trabalho que se insurge a vagabundagem aliada às regalias, o pedigree caviloso onde “a lei é feita para os inimigos e o trabalho para o otário”, resume o jargão exultante da “lei da vantagem” pelo mínimo esforço. Além dos cochilos em plenário, foi o deputado que mais gastou com correio nos seus últimos três mandatos, com custo aos (nossos) cofres públicos de R$ 870 mil. Mais recentemente, sua ex-esposa Ana Cristina Siqueira Valle voltou ao noticiário político-policial após a suposta compra de uma mansão em Brasília. Muito antes, Ana Cristina já inaugurava a conhecida fruticultura legislativa, a prática de “laranjas” em comissionados em gabinetes, alcançando uma evolução patrimonial incompatível com sua renda: somente entre 1997 e 2007, tempo em que ficou casada com presidente Bolsonaro, adquiriu 14 imóveis (casas, apartamentos e terrenos), avaliados em R$ 5,3 milhões em valores corrigidos.
Segundo sites de acompanhamento legislativo, desde 1989, o então presidente Bolsonaro e sua casta de filhos – Flávio, Carlos e Eduardo – nomearam 286 pessoas em seus gabinetes, dentre elas, 102 familiares ou pessoas com algum vínculo de parentesco, compondo 32 diferentes famílias, na sua imensa maioria indivíduos que sequer compareciam ao trabalham, mas que mensalmente recebiam ou partilhavam os seus salários com o clã legislativo do citrosuco da mamata.
V. O Madraço. A vadiagem de covil, indolência, a sorna do seu “espírito” militar certamente representa a marca mais evidente da militarização da administração pública, onde mais de 6 mil agentes das Forças Armadas ocupam cargos e acumulam privilégios, espalhados por toda estrutura administrativa do Estado. Em meio aos inúmeros escândalos e denuncias de tráfico de influência, negociatas e propinas na compra de vacinas no Ministério da Saúde, mais de 1.300 militares, entre eles coronéis e o ex-ministro Eduardo Pazuello, estão envolvidos diretamente na catastrófica política de combate à pandemia da Covid-19 e no esquema criminoso de corrupção, conforme apurado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado.
Paradoxalmente, enquanto buscou recentemente, através da MP 1045, aumentar a jornada de trabalho e o corte do descanso dos trabalhadores em mineração, o despresidente Bolsonaro insiste na vadiagem, pois, alegando um suposto cansaço físico e mental, não trabalha. Enquanto mais de 583 mil brasileiros foram mortos pela inércia da política de combate à Covid-19, a atividade presidencial limitou-se a “despachar” no “curralzinho” do Palácio da Alvorada por 40 minutos com correligionários igualmente desocupados, a manifestar-se pelas redes de Twitter e selfies e a bater pernas país afora, participando de motociatas, montarias de jumentos, criando pautas absurdas, no seu andejo aviltante da preguiça.
No último mês de junho a sua “extenuante” agenda limitou-se apenas a 83 horas e 25 minutos de atividade oficiais e 8 dias folgados na “gozolândia”, sem nenhum compromisso oficial, enquanto a jornada média dos trabalhadores brasileiros é de 220 horas mensais. O chamado “sextou” é a sua predileção: em 85% dela encerrou o expediente muito antes das 18 horas; em 16 oportunidades terminou a sua última reunião antes das 16 horas e em outras 6 delas, antes mesmo do meio-dia, afinal, ninguém é de ferro ou feno. Nesta última semana, preparatória do ato infame do dia 07 de setembro, entre os dias 30/08 a 03/09 cumpriu uma agenda oficial com 18 horas e 35 minutos, perfazendo pouco mais de 3,5 horas de trabalho diários, segundo o site da presidência da República.
A sensação é que estamos numa ilha de prostração cercada por vagabundos por todos os lados.