por Fernando do Valle
Espantoso como a falsa moral e bons costumes da elite brasileira, que sonega bilhões e corrompe o Estado há séculos, é incorporada bovinamente no discurso da classe média. Impossível acreditar que “honestos” empreiteiros, industriais, CEOS, diretores de empresa foram ludibriados por Lula, o “ladrão operário que fala palavrão e que vai mofar na prisão” (discurso rápido ouvido em elevador).
Ingênuos os muitos que acreditaram na conciliação de classes em um país ainda profundamente desigual. Lula perpetuou velhas relações promíscuas do Estado com alguns empreiteiros do 0,1% que controla a grana e agora está escancarado o modo irresponsável como essas empresas operam. Em uma das ligações da República Federativa dos Grampos, vulgo Brasil, Marcelo Odebrecht chamou o ex-presidente de Brahma, quem mandou Lula bicar o Blue Label que embala os papos da alta roda, Odebrecht deu a senha, lugar de operário é no boteco tomando cachaça e cerveja. Não sei se Eduardo “Caranguejo” Cunha, evangélico que é, entorna Blue Label, convidado com certeza é, mas sempre soube seu lugar.
O mundo político foi mais uma vez abalado com uma lista de 316 políticos de 24 partidos que receberam dinheiro da construtora Odebrecht nas eleições de 2012 e 2014. O grande capital compra políticos no varejo e ainda os apelida na planilha com nomes hilários: Jaques Wagner é o Passivo, Eduardo Cunha, o Caranguejo, Renan Calheiros o Atleta, Eduardo Paes o Nervosinho, José Sarney o Escritor, Humberto Costa o Drácula, Lindbergh Farias o Lindinho e Manuela D’Ávila o Avião e por aí vai. Na lista, não constam Brahma e Dilma.
“A “boa consciência” das classes privilegiadas torna-se perfeita, já que o problema está sempre longe, na corrupção estatal, por exemplo, permitindo uma perfeita legitimação de práticas cotidianas de exploração e humilhação” (Jessé Souza em “A tolice da inteligência brasileira ou como o país se deixa manipular pela elite”, página 156).
O mais tragicômico entre os inúmeros grampos ilegais do juiz Sérgio Moro mostra o prefeito olímpico Eduardo Paes, o Nervosinho, sem papas na língua, criticando a “alma de pobre” do ex-presidente que frequenta sítio e compra barquinho. Lula ri do outro lado da linha. Quem está rindo também são empresários, muitos deles encastelados na Fiesp, que enxergam na crise política a oportunidade de guindar ao posto mais alto do executivo um político mais alinhado aos seus interesses. Para isso distribuem filé mignon a manifestantes a favor do impeachment, se a estratégia der certo, mais tarde a classe média “que luta contra a corrupção” vai engolir acém moído. Se reclamarem, tropa de choque a postos, dessa vez sem selfie.
Mas então Lula não tem culpa de nada? É um santo? Pode perguntar a dona de casa com a camiseta da impoluta CBF. O boquirroto Ciro Gomes sempre acusa seu amigo Lula de ter “vocação para virar Deus”. Dizia o capeta na pessoa de Al Pacino no final do filme Advogado do Diabo que a vaidade é um dos seus pecados preferidos. Quem não se lembra de 2007, 2008, enquanto o mundo se afogava na crise financeira, vivíamos uma vibração positiva no país, como se nossas diferenças tivessem sido colocadas debaixo do tapete e o Brasil encontrado seu destino glorioso. Lula só não saiu da presidência em 2010 elegendo uma ministra pouco conhecida, como era aprovado por 83% da população. Mais: 84% dos brasileiros acreditavam que o país estava melhor. Quem não ficaria vaidoso que atire a primeira pedra.
Mas boa parte da classe média que engoliu Lula por um período o regurgita agora com doses maciças de preconceito e ódio, teleguiados por uma imprensa torpe e grupos organizados da direita com as burras cheias de dólares. Em uma catarse triste, muitos agora sentem-se à vontade para gritar pela janela que Lula é vagabundo e analfabeto.
“Sou jornalista, mas gosto mesmo é de marcenaria. Gosto de fazer móveis, cadeiras, e minha ética como marceneiro é igual à minha ética como jornalista – não tenho duas. Não existe uma ética específica do jornalista: sua ética é a mesma do cidadão” (Cláudio Abramo).
Há sempre legitimidade no protesto movido pelo descontentamento contra qualquer governo, mesmo o mais empedernido governista não pode fechar os olhos aos repetidos erros de Dilma nos últimos meses que desembocaram em uma difícil situação econômica e uma forte rejeição ao seu governo, mas se a crítica é contaminada por um discurso excludente, ela não é direcionada aos equívocos de Dilma e sim às mudanças que beneficiaram parcelas da população mais pobre no quadro social brasileiro, que permaneceu praticamente inalterado por décadas.
Sonho que um pouco dessa indignação contra Lula se voltasse a favor de demandas justas e necessárias. Antes de Lula assumir a presidência, jamais vi parte da classe média conservadora se indignar contra a fome, a desigualdade, a violência policial, a barbárie da situação carcerária brasileira. E pelo jeito, continuam os mesmos, e ainda mais raivosos. Do outro lado, talvez a mobilização do protesto do dia 18 de março sirva para alguma mudança na correção dos rumos do governo que não cansa de agradar a plutocracia que manda neste país e já provou que não tem fidelidade a ninguém, só a seus interesses privados.
Lula nunca foi revolucionário e propunha reformas em junho de 2002 na Carta ao Povo Brasileiro , muitas delas não cumpridas ou cumpridas em parte. É inegável o aprimoramento de certas instituições, como da Polícia Federal (apesar de certos abusos) e da Procuradoria Geral da República nos últimos anos. O ex-chefe de gabinete de Lula, Gilberto Carvalho, afirmou em entrevista “que Lula sempre dizia: daqui pra frente, quem não quiser ser investigado no governo, que não erre. Doa quem doer. Eu me lembro da nossa dor quando o José Dirceu, o [Antonio] Palocci foram investigados”.
Agora observamos a força do injusto pacto social intermediado por muitos políticos sem caráter. No início da Operação Lava Jato, a prisão de empreiteiros trazia a falsa esperança de que os poderosos fraudadores e sonegadores não eram mais inatingíveis, mas agora o sistema tenta sobreviver expurgando o partido que governa o país há 13 anos.
Na eleição de 2014, o ex-presidente da Fiesp, Horacio Lafer Piva, em reunião na casa do candidato tucano à prefeitura de São Paulo, João Dória Junior, perguntava ao presidenciável Aécio Neves, exaltado como o “novo” pela burguesia ali reunida, como ele faria “sua mensagem chegar aos que votam com o estômago”. Ficava cristalino como os que detêm a grana não fariam mais concessões, a partir dali as coisas seriam do jeito deles e fim de papo.
Para isso, a mídia adotou o discurso maniqueísta de bons versus maus, de éticos contra corruptos para esconder suas preferências políticas e reconheçamos que o trabalho tem dado resultado, parte da classe média já embarcou nessa ética mais falsa que nota de 3 embalada na bandeira do Brasil em clima de Copa do Mundo fora de época.