Zona Curva

Um bilhão de famintos no mundo

por Elaine Tavares

Na última semana, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) divulgou os números da fome no mundo. Quase um bilhão de famintos (821 milhões). E isso considerando os países que dispõem de dados, o que significa que o número pode ser maior. Só no continente africano estão 256 milhões de pessoas passando fome.  Na América Latina, aonde os números haviam diminuído, a fome voltou a crescer, afetando 32 milhões de pessoas. 

Fazendo as contas é possível perceber que aproximadamente uma em cada nove pessoas no planeta está nesse momento passando fome. E não é aquela fome que dá quando ficamos um período sem comer. É a fome estrutural, a que mata horrivelmente, e mata mais do que qualquer outra enfermidade no mundo.

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A FAO reconhece que as guerras, os conflitos armados (60% dos famintos estão em zona de guerra) são causas importantes para o drama da fome, assim como também as mudanças climáticas que acabam afetando bem mais os empobrecidos. Mas, também aponta que essas emergências bélicas e climáticas, apesar de influírem no mapa da fome, não são as causas principais. 

A fome da maioria dessas pessoas é estrutural, ou seja, são gerações e gerações vivendo sem alimentação adequada ou se alimentando muito pouco. Porque faz parte da organização do modo de produção capitalista que para que poucos tenham muito, a maioria seja despojada de tudo. 

Parece irracional que quase um bilhão de pessoas esteja vivenciando o horror da fome num mundo que produz tanta comida, cujas cifras poderiam alimentar quase 13 bilhões de seres humanos tranquilamente (o dobro do número de pessoas que existe). Num mundo onde o desperdício de comida é imenso.  Mas, o que acontece é que como bem apontava Marx, a lógica do capital é manter os trabalhadores num estado limite entre a possibilidade de produzir valor e a morte. Nem ganhando tanto que possam achar que não precisam trabalhar, nem tão pouco que não sobrevivam. É da natureza do capital manter os trabalhadores nesse estado de letargia, típico da fome.


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Uma olhada sobre o nosso território brasileiro e vamos ver que a produção maior de grãos não é para comer. Serão 232 milhões de toneladas esse ano, a segunda maior produção de toda a história. Mas, é uma produção que serve para exportação e vai alimentar vacas e porcos em outros países. 

O jornalista argentino Martín Caparros, autor do livro “A Fome”, escrevendo sobre os números da fome lembra que no seu país, Argentina, a produção atual de alimentos poderia sustentar 300 milhões de pessoas, mas mesmo lá existem dois milhões de famintos com tendência a aumentar esse número. Ele mostra uma conta muito simples: para produzir um quilo de carne são necessários dez quilos de cereais. Então, o produtor de grãos tem duas opções. Ou vende um quilo de cereal para dez famílias ou vende os dez quilos, a um preço bem melhor, para um fazendeiro criador de gado. No geral, a escolha é pelo gado e não pelas gentes.

Ele lembra também do caso de Níger, um país africano considerado um dos mais pobres do mundo e com séculos de fome estrutural. Lá, os campos são secos e tudo é pobre, o que pode parecer que não há saída. Mas, esse mesmo país é o segundo produtor mundial de urânio, mineral estratégico e caro. Imaginem o que não seria possível fazer com os recursos do urânio? Mas, se a riqueza entra no país, ela não chega às pessoas em geral. Fica em algum bolso. 

Assim que a fome não tem nada a ver com falta de comida, mas sim como o sistema capitalista se organiza. No Brasil, por exemplo, ainda são contabilizadas 7 milhões de pessoas no mapa da fome (IBGE), o mesmo país que desperdiça 14 mil toneladas de alimentos por ano, estando entre os dez mais em desperdício no mundo.

Mas, esses terríveis números, divulgados todos os anos pela FAO, caem no vazio. Porque a notícia é dada nos telejornais como uma nota ritualística. Um bilhão de pessoas passam fome no mundo. E ponto. Não dizem por quê. E quem ouve, se impressiona naquele momento, mas logo já esquece, envolvida com outra notícia bombástica, como a separação de uma celebridade, ou outra coisa qualquer.

Esse um bilhão de pessoas famintas não tem rosto, não tem nome, não tem CPF nem endereço, não provoca qualquer empatia. Quando muito uma lágrima rápida diante de uma foto impactante de um menino morrendo, e sendo velado por um urubu. Mas, poucos são aqueles que procuram saber os porquês. O que afinal se passa no mundo, se há tanta comida sendo produzida? Que sistema é esse no qual para que poucos vivam à larga, milhões tenham de morrer?

A fome no mundo é a falência de nossa espécie. Uma pessoa em cada nove está morrendo agora, essa morte lenta, dolorosa, marcada pelo horror. E para essa gente não basta que doemos o nosso quilo de arroz, em musculação de consciência. Ajudá-las é mudar o sistema. Mudar o modo de organização da vida. 

Sem isso, seremos sempre cúmplices dessa dor.

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