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Ucrânia: o jornalismo precisa fazer uma autocrítica

Nós, jornalistas, precisamos fazer uma dolorosa autocrítica. Acabamos participantes da construção de uma narrativa sobre a guerra na Ucrânia que está nos levando a uma crise mundial, cujo desfecho é uma gigantesca incógnita, onde apenas uma coisa é certa: o número de perdedores poderá ser muitíssimo maior do que o de ganhadores.

Como jornalistas, selecionamos, formatamos e publicamos dados, fatos e eventos sobre a guerra na Ucrânia que influenciaram decisivamente a formação de opiniões contrárias à Rússia em boa parte do planeta. É claro que não somos responsáveis pelo que dizem e fazem Biden, Putin, Zelensky, Xi Jiiping e líderes europeus. Mas somos nós que damos ou não destaque às ações destes protagonistas do conflito, e o que publicamos leva as pessoas a darem mais ou menos importância ao que entra na agenda da imprensa.

O resultado disto é que nos tornamos protagonistas da construção de uma narrativa unilateral da crise ucraniana, ignorando o dogma profissional de ouvir os dois lados de forma igualitária, sem a devida contextualização dos fatos e muitas vezes sem até mesmo checar se estamos ou não sendo inocentes úteis numa guerra de fake news.

A esmagadora maioria dos jornalistas, na maior parte do mundo, não deu a devida atenção aos precedentes históricos e ao que está por trás do atual xadrez bélico/diplomático. O russo Vladimir Putin não é nenhum modelo de líder democrático. Joe Biden preside um império em declínio obcecado pela perda iminente da hegemonia mundial para a China; e Zelensky, um comediante sem experiência política, acabou manobrado tanto pela extrema direita como pela Casa Branca.

Poucos profissionais deram a devida importância ao fato do ucraniano Wolodymyr Zelensky ter sido eleito presidente em 2019, com 72% dos votos propondo um acordo de paz na região de Donbass (1) . Mas a esperança de paz durou pouco porque a extrema direita ucraniana ameaçou matar Zelensky e toda sua família caso Donbass, cuja população é majoritariamente descendente de russos, se tornasse autônoma dentro de um estado federativo. Zelensky cedeu à pressão da extrema direita, o que irritou Putin e deu a Biden o pretexto para usar a Ucrânia para meter a Rússia num atoleiro militar.

A imprensa mundial, inclusive a brasileira, não deu a devida importância ao fato de Joe Biden já ter dedicado mais de 60 bilhões de dólares para apoio militar a Zelensky, justo num momento em que a inflação interna nos EUA bate recorde e a economia norte-americana dá sinais de enfraquecimento. A jogada de Biden é clara: penalizar o público doméstico, na aposta de que um eventual revés russo na Ucrânia contribua para reduzir o ímpeto econômico chinês, este sim o grande alvo da Casa Branca. Só que o extremista Donald Trump já está faturando eleitoralmente o descontentamento da classe média norte-americana.

Jornalistas na Ucrânia (Foto de Raphael Lapargue/ ABACAPRESS publicada por Free Press Unlimited)
O G-7 (as sete nações mais ricas do mundo) anunciou esta semana um empréstimo de 31 bilhões de dólares (30 bilhões de euros) para a reconstrução da Ucrânia e mais 520 milhões de dólares em armas e equipamento militar. Os governos membros da OTAN estão gastando fortunas para alimentar uma guerra, ignorando o fato de que ela agrava uma crise econômica iniciada antes de pandemia da Covid 19. É um absurdo financiar um conflito sabendo que a reconstrução da Ucrânia vai custar ainda mais caro do que a guerra.

O mundo poderia evitar o caos econômico e a destruição da Ucrânia se os países da OTAN tivessem feito uma conta básica de custo-benefício da guerra. Bastaria Zelensky renunciar ao ingresso na Aliança Militar do Ocidente, controlar a extrema direita interna, e respeitar o acordo de Minsk (2014) que deu autonomia parcial à região de Donbass. Putin perderia o pretexto para a invasão, seis milhões de ucranianos não precisariam emigrar e a economia mundial teria um ambiente um pouco mais tranquilo para enfrentar a recessão causada pela Covid 19.

Nada disto que mostrei acima é inédito pois já foi dito por muitos comentaristas políticos internacionais e acadêmicos. Só que a maioria da imprensa continua presa a uma narrativa do bem contra o mal, do humanitário Biden e do valoroso Zelensky contra o diabólico Putin e o sinistro Xi Jiping. Ignoramos a complexidade dos fatos e processos, para nos refugiarmos no simplismo que nos livra da necessidade de ter que pensar e contrariar estratégias de informação desenvolvidas tanto em Washington, como em Kiev e Moscou. Não há inocentes nesta guerra, mas a imprensa, contrariando seus dogmas, já consagrou um bandido e um mocinho.

Todas estas afirmações estão baseadas em fatos e depoimentos que não reproduzo aqui porque acabaria escrevendo um livro. Mas valem o início de um debate. O propósito deste texto é chamar a atenção para a falta de um equilíbrio informativo na cobertura da guerra na Ucrânia. Não se trata apenas de ser ou parecer isento, mas de ter consciência de que as pessoas precisam saber que o desenrolar dos acontecimentos desde o mês de abril sinalizam um agravamento do conflito que nos coloca na faixa de risco para um confronto nuclear. Nossa sobrevivência depende de um fluxo diversificado e transparente de informações sobre o que está acontecendo de fato na Ucrânia.

(1) Donbass é uma região da Ucrânia situada na fronteira com a Rússia onde estão as cidades de Luhansk e Donetsk.

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Nós, jornalistas, precisamos fazer uma dolorosa autocrítica. Acabamos participantes da construção de uma narrativa sobre a guerra na Ucrânia que está nos levando a uma crise mundial, cujo desfecho é uma gigantesca incógnita, onde apenas uma coisa é certa: o número de perdedores poderá ser muitíssimo maior do que o de ganhadores.
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