“— Você exagera, objetou Leiva. O jornal já prestou serviços.
— Decerto.. não nego… mas quando era manifestação individual, quando não era cousa que desse lucro; hoje é a mais tirânica manifestação do capitalismo e a mais terrível também… É um poder vago, sutil, impessoal, que só poucas inteligências podem colher-lhe a força e a essencial ausência da mais elementar moralidade, dos mais rudimentares sentimentos de justiça e honestidade! São grandes empresas, propriedades de venturosos donos, destinada a lhes dar o domínio sobre as massas, em cuja linguagem falam, e a cuja inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os caracteres para os seus desejos inferiores, para os seus atrozes lucros burgueses… Não é fácil a um indivíduo qualquer, pobre, cheio de grandes ideias, fundar um que os combata… Há necessidade de dinheiro; são precisos, portanto, capitalistas que determinem e imponham o que se deve fazer num jornal…”
(trecho do livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto, em que o personagem Plínio de Andrade descreve para Isaías e Leiva a imprensa da época)
O primeiro romance de Lima Barreto, Recordações do Escrivão Isaías Caminha foi lançado em 1909, dois anos antes de seu livro mais conhecido, Triste Fim de Policarpo Quaresma.
Filho de uma escrava liberta e um tipógrafo, Lima Barreto retratou de maneira impiedosa em Recordações o jornalismo praticado na época. Além disso, mostrava as dificuldades enfrentadas por um intelectual mulato e pobre em busca de sobrevivência. Após a publicação da obra, sua situação piorou ainda mais e ele foi praticamente banido dos meios jornalísticos.
A atualidade da crítica à imprensa pelo escritor ainda carrega um tom de ironia, o jornal que Isaías trabalha no livro chama-se O Globo. Respeitadas as fronteiras entre ficção e realidade, Lima Barreto escreveu seu livro após experiência como repórter no jornal Correio da Manhã em 1905. Alguns de seus textos publicados nesse jornal podem ser considerados marcos do início do jornalismo literário no Brasil.
O crítico Francisco de Assis Barbosa, autor da biografia do escritor, A Vida de Lima Barreto (1952) resume o espírito do livro:
“Engana-se, quem quiser ver no livro apenas uma explosão de recalques ou um ataque desabrido de mulato despeitado a certos figurões das letras, do jornalismo e da política. A intenção do romancista foi mais alta. E, muito mais importante que uma caricatura virulenta e impiedosa, é, na verdade, mensagem humana que se encerra no bojo da novela”.