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Rubem Fonseca e o silêncio que não apaga o passado

Como o escritor Rubem Fonseca sente verdadeira ojeriza por entrevistas, sempre pairou a desconfiança de que a causa dessa aversão advém da tentativa de esconder seu convívio nos anos 60 com algumas figuras de destaque da ditadura militar. Fonseca participou da direção do IPÊS (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), que organizou a base ideológica para o golpe de 64, e foi próximo do general Golbery do Couto e Silva, uma espécie de eminência parda do regime de exceção.

Em entrevista a revista Bravo! em 2009, o jurista Candido Mendes declarou: “Eu me lembro do fascínio do general Golbery com o José Rubem… Ele admirava o José Rubem por sua capacidade, sua implacabilidade de raciocínio”. Através de Golbery, Fonseca conheceu seu primeiro editor, o ex-camisa verde (apelido dos integralistas), Gumercindo Rocha Dorea, diretor da Editora GRD, que publicou os dois primeiros livros de Rubem: Os Prisioneiros (1963) e Coleira do Cão (1965).

24 de abril Rubem Fonseca (fonte blog Monte de Leituras) no final dos anos 70 (1)
Rubem Fonseca, em foto no final dos anos 70, era admirado pelo general Golbery (fonte: blog Monte de Leituras)

Não é possível mais defender o silêncio do escritor que, sem dúvida, teve papel primordial na literatura brasileira das últimas décadas, como apenas uma característica de sua personalidade. Alguns até comparam o silêncio de Rubem ao de outro escritor que também influenciou toda uma geração de escribas, o vampiro de Curitiba Dalton Trevisan, que também rechaça qualquer investida da imprensa. No caso de Trevisan, talvez aí sim seja uma característica pessoal como até indica seu apelido. Já Rubem, nos últimos anos, tem falado e mostrado sua verve em eventos tanto no exterior como em algumas ainda raras ocasiões no país. Assista aos dois vídeos de aparições públicas do escritor no texto Zonacurva sobre seu último livro, Amálgama.

O general Golbery foi um dos fundadores do IPÊS (fonte: Anibal Philot/ O Globo)

Rubem Fonseca no IPÊS

O IPÊS (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) surgiu em novembro de 1961, apenas dois meses após a renúncia de Jânio Quadros, pelas mãos de Golbery e Figueiredo, entre outros militares, empresários e políticos.

O instituto apresentava-se como uma “agremiação apartidária com objetivos essencialmente educacionais e cívicos e orientado por dirigentes de empresas que participam com convicção democrática e como patriotas”.

De acordo com o historiador uruguaio René Armand Dreifuss em seu livro 1964: a conquista do Estado, Ação Política, Poder e Golpe de Classe, Rubem Fonseca teve como sua principal função no IPÊS a de supervisionar a unificação ideológica e editorial dos materiais de divulgação do instituto. Ao seu lado, trabalhavam o poeta e jornalista Odylo Costa Filho, a escritora Raquel de Queiroz e o jornalista Wilson Figueiredo.

O material produzido pelo IPÊS, em especial seus curtos filmes que eram exibidos em cinemas e na televisão, foi um dos responsáveis por criar um clima de pânico, principalmente entre a classe média, do “verdadeiro descalabro que ameaçava nossa democracia“. Em conjunto com o IPÊS, atuava o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) que também reunia em seus quadros intelectuais orgânicos que representavam os interesses do grande empresariado e, em especial, do capital norte-americano. Podemos dizer que ambos constituíram uma verdadeira organização composta por intelectuais, empresários e militares em defesa dos interesses da elite brasileira e seus aliados.

Segundo o livro A ditadura envergonhada, do jornalista Elio Gaspari, o IPÊS funcionava no 27º andar do moderno edifício Avenida Central, no centro da capital fluminense. Em incrível coincidência, por lá também atuava o escritório da agência de notícias cubana Prensa Latina. O  democrático prédio ainda abrigava duas bases de operações clandestinas: uma do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e outra de radicais de direita.

Rubem Fonseca trabalhou na comunicação do IPÊS (fonte: agência Estado)

O documentário O dia que durou 21 anos, de Camilo Tavares, lançado no ano passado, coloca de forma muito clara a participação dos Estados Unidos na criação do IBAD e do IPÊS. Lincoln Gordon, embaixador norte-americano no Brasil no período pré-golpe, aconselha o presidente John Kennedy a ajudar com alguns milhões de dólares os institutos. Kennedy questiona se isso seria realmente necessário. Gordon é categórico: “nós não podemos correr riscos”.

Plínio de Arruda Sampaio, deputado federal no período que precedeu o golpe, lembra no filme que foi procurado por uma pessoa ligada ao IPÊS, que lhe ofereceu certa quantia para que ele defendesse a democracia, Plínio refutou: “mas eu já defendo a democracia, para isso, não preciso de dinheiro”.

Leia texto sobre o documentário O dia que durou 21 anos

A jornalista Regina Coelho abordou a relação de Rubem Fonseca com o IPÊS na matéria O homem em questão publicada no jornal Correio da Manhã no final dos anos 60. O telefonema da jornalista irritou Rubem Fonseca, que se negou a responder qualquer pergunta. O papo acabou se tornando um áspero diálogo entre os dois:

“Se você entrevistasse o Carlos Drummond de Andrade seria importante o que ele faz ou o que ele é”. Regina Coelho rebate: “segundo Sartre, o homem é aquilo que ele faz”. “E nós somos esta espécie de conjunto desorganizado em termos de função na vida, não tenho nada a dizer”. Silêncio. Regina pergunta: “Isto vai atrapalhar o seu trabalho?” “Claro que vai, mas profissionalmente a gente se vira, não precisa ficar com complexo de culpa, bem, você estragou o meu dia, não quero ser rude, não devia ter atendido o telefone, interprete como quiser, arranje outro entrevistado”.

 Em 1994, José Rubem publicou um artigo no jornal Folha de São Paulo em que afirma que sua participação no IPÊS foi uma decorrência de sua atividade empresarial como executivo da Light e nega ter colaborado com a ditadura. Leia trecho:

“No ato de fundação do IPÊS a Assembleia Geral me escolheu como um dos diretores do Instituto. Toda a direção era composta de empresários que continuavam trabalhando em suas companhias e não recebiam remuneração pela sua colaboração.

À medida em que crescia a rejeição ao governo João Goulart na classe média, em setores empresariais, eclesiásticos, militares e também na mídia, no IPÊS se desenvolveram duas tendências. Uma, fiel aos princípios que haviam inspirado a fundação do Instituto, manteve-se favorável a que as reformas de base por ele defendidas fossem implantadas através de ampla discussão com a sociedade civil, o governo e o parlamento; a outra passou a julgar a derrubada do governo João Goulart como única solução para os problemas políticos, econômicos e sociais que o país enfrentava.

A eclosão do movimento militar solucionou, no que me concernia, a controvérsia existente entre as duas tendências dentro do Instituto. Eu afastei-me completamente do IPÊS e nunca me aproximei do novo governo, nem daqueles que o sucederam. Não era, como homem de empresa, nem sou agora, como escritor, favorável à ruptura da ordem constitucional em nosso país através de revoluções ou golpes de estado, militares ou civis.”

Alguns documentos rebatem a afirmação de que o escritor abandonou o IPÊS após o golpe militar em 1964. É certo que, em 1965, há uma carta de um líder do instituto lamentando a exoneração de Fonseca de suas funções da diretoria. Mas, em 1968, outro documento atesta sua recondução como conselheiro da instituição. Recibos encontrados nos arquivos do IPÊS provam a contribuição financeira de Rubem Fonseca até 1970.

Antes da literatura, o executivo Rubem Fonseca

Muitos anos antes de publicar seu primeiro livro, Rubem Fonseca entrou para a Academia de Polícia em 1949 após formar-se em direito. Foi considerado um dos melhores alunos. Depois de uma curta carreira na polícia, o escritor passou a trabalhar como executivo da área de comunicação na iniciativa privada por volta de 1955.

O ápice de sua carreira como executivo foi na empresa Light, empresa de capital canadense concessionária da produção e distribuição de energia elétrica no Rio de Janeiro e em São Paulo. Entre 1965 e 1974, a Light teve no seu comando o empresário Antonio Gallotti. De origem italiana e notório anticomunista, Gallotti também atuou na fundação do IPÊS.

O livro de Elio Gaspari narra uma história curiosa que mostra a proximidade de Gallotti com a cúpula militar. Presença constante das rodas de pôquer do inveterado apostador Costa e Silva (antes deste se tornar o segundo ditador do regime de exceção), Gallotti recebeu um cheque de Costa e Silva e temia que se descontasse o cheque, ofenderia o militar. O contrário já tinha acontecido e o general correu para a boca do caixa. Gallotti resolveu perguntar para outro empresário próximo aos militares, o empreiteiro Jadir Gomes de Souza, que organizara a jogatina, se não seria melhor a devolução do cheque a Costa e Silva. Após a conversa, Gallotti decidiu não testar o fair play de Costa e Silva e a quantia não foi descontada.

O irônico é que nem os amigos influentes de Rubem Fonseca conseguiram barrar a proibição de seu livro Feliz Ano Novo, censurado em 1976. O ministro da Justiça, Armando Falcão, autor do despacho que determinou a proibição da coletânea de contos, disse que nem precisou ler o livro todo para pedir sua interdição. Segundo ele, bastou encontrar alguns palavrões no início da leitura para tomar sua decisão. A batalha judicial para a liberação do livro durou até 1989.

Nota do autor deste texto:

“O que me levou a investigar as relações políticas e empresariais de Rubem Fonseca foi a minha profunda admiração por seus livros. Sempre me intrigou suas relações com o grupo opositor de Jango. É possível a divisão entre a fruição estética de uma obra e os descaminhos políticos (na minha concepção) de determinado artista A obra artística está acima, ao lado ou abaixo da política? É mais fácil praticar uma obra dentro dos ditames da esquerda ou da direita? Acredito que são perguntas de difícil resposta que me acompanharam na produção deste texto.”

Fontes usadas: revista ‘Terceira Margem – Dossiê Rubem Fonseca’ do programa de pós-graduação em Comunicação  da UFRJ, livro ‘A Ditadura envergonhada’, de Elio Gaspari, revista Bravo! e jornal Folha de São Paulo.

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