Relógio do apocalipse – Os ponteiros do simbólico relógio, criado há 75 anos (1947) para medir o perigo de uma guerra nuclear global, mostram que estamos a meros 100 segundos entre o lançamento da primeira bomba atômica e o início de uma retaliação que pode levar à destruição de boa parte do planeta Terra.
É apenas a segunda vez na história do relógio que ele aponta para um tempo tão curto para a chegada da fatídica ‘’meia noite” da insanidade atômica. A primeira vez foi em 1953, um período de enorme tensão entre Estados Unidos e a então União Soviética, e que descambou anos mais tarde na fracassada tentativa norte-americana de invasão da Baia dos Porcos, em Cuba, em 1961, agravada um ano depois pela decisão soviética de instalar bases de mísseis atômicos em território cubano. O apocalipse nuclear foi evitado por um acordo entre Washington e Moscou.
A mais recente atualização do Relógio do Apocalipse foi feita em janeiro deste ano quando os integrantes do grupo de 28 cientistas , entre eles nove prêmios Nobel, se reuniram para avaliar os riscos de um conflito nuclear no planeta. A crise da Ucrânia ainda não tinha começado, mas o clima de tensão já havia contaminado os meios acadêmicos da Europa e dos Estados Unidos. As atualizações demoram algum tempo para acontecer por conta da diversidade e distribuição geográfica dos participantes.
De janeiro até agora, a situação piorou muito em termos da tensão entre os países ocidentais liderados pelos Estados Unidos e a Rússia, com seu arsenal nuclear de seis mil ogivas, 500 a mais do que o dos Estados Unidos. Segundo a jornalista norte-americana Caitlin Johnstone, estamos revivendo os riscos da crise dos mísseis, há 60 anos, mas com duas agravantes.
Fatores agravantes
Enquanto nos anos 50 e 60 do século passado, a tensão nuclear contaminou boa parte da população mundial, hoje o medo de uma hecatombe atômica está restrito às pessoas com mais de 50 anos, porque a maioria dos mais jovens não passou pela traumática experiência de esperar o pior sem poder fazer nada. A opinião pública mundial está muito menos consciente dos riscos de um apocalipse planetário depois do fim da Guerra Fria entre o capitalismo e o comunismo.
O segundo fator agravante é o risco de decisões erradas por causa das mudanças tecnológicas nos processos de gerenciamento do disparo de armas nucleares. A automação digital dos sistemas de tomada de decisão e acionamento dos mísseis encurtou dramaticamente o tempo entre um ato e o outro. Na crise dos mísseis, todo o processo era basicamente humano, enquanto agora os algoritmos desempenham a maior parte das tarefas que antecedem o início de um apocalipse.
O cientista nuclear norte-americano Ray McGovern, autor de um artigo sombriamente intitulado “Will Humans Be the Next ‘Freedom Fries’? (1), afirma que o maior risco está nos sistemas de identificação de disparos de mísseis com ogivas atômicas. McGovern, um ex-analista de assuntos nucleares da CIA (Agência Central de Inteligência), afirma que embora os russos tenham mais e melhores armas nucleares do que os norte-americanos, o sistema deles de alerta de um ataque com mísseis é pouco confiável e desatualizado.
A terceirização do apocalipse
“Os russos sabem disto desde 1995 quando tardaram vários minutos para identificar como inofensivo um míssil militar disparado da Noruega para pesquisa atmosférica. Se o foguete tivesse uma carga nuclear, a demora na identificação seria fatal”, diz McGovern. Hoje, pesquisadores americanos acreditam que o sistema russo de detecção ainda é muito menos sofisticado do que o norte-americano, o que pode levar Putin a reagir por impulso diante da menor suspeita de ataque.
Outro elemento que tira o sono da equipe de pesquisadores do Relógio do Apocalipse é o fato de que muitos procedimentos prévios ao disparo de um míssil nuclear foram terceirizados nos Estados Unidos para empresas particulares. O elevadíssimo grau de especialização tecnológica incorporado ao sistema de deflagração de um ataque nuclear faz com que várias etapas do processo fiquem fora do controle direto das autoridades civis e militares responsáveis pelo comando das operações. Um erro ou descuido nestas condições dificilmente poderá ser corrigido a tempo.
Estes fatores estão presentes também no uso das chamadas armas nucleares táticas, artefatos de menor poder explosivo para destruição de objetivos militares específicos, como um aeroporto ou quartel. O problema é que estas bombas, depois de usadas, geram também radiação atômica de longa duração que contamina pessoas e prédios.
Convivemos com arsenais nucleares por mais de 60 anos. Já tivemos períodos de relativa tranquilidade, como o de 1991/1995 quando o Relógio do Apocalipse indicava que a humanidade tinha pouco menos de três horas para evitar uma guerra atômica. Era tempo suficiente para frear impulsos e corrigir erros. Hoje, o que deve nos assustar é a possibilidade de que o minuto e 40 segundos que nos restam sejam insuficientes para uma brevissima reflexão e abortar um processo civil/militar parcialmente automatizado.
(1) Freedom Fries é uma expressão pejorativa criada em 2003 por políticos norte-americanos para mostrar irritação contra o governo francês, quando este se opôs à invasão do Iraque. French Fries é batata frita em inglês. Ao adaptar para Freedom Fries a intenção era acusar o governo francês de tolerar uma fritura da liberdade ao rejeitar uma ação militar contra Saddam Hussein, considerado um ditador pelos Estados Unidos.
As guerras do Império Russo em expansão: Tolstói e seu livro autobiográfico