Zona Curva

Quando Sophia Loren entrou na guerra dos seios

por Roberto Acioli de Oliveira

Sophia Loren – A indústria cinematográfica italiana se reergueu rapidamente após o término da Segunda Guerra Mundial. Para além do movimento neo-realista no cinema de Roberto Rossellini e alguns outros realizadores (que utilizavam não-atores, pessoas desconhecidas do povo), cresceu a demanda por “novos rostos” que representassem a Itália no teatro, cinema e televisão. A busca por mulheres jovens e “bem torneadas” está na base dos concursos de beleza que ressurgiram a partir de 1946 (no período fascista se estimulavam as competições fotográficas em revistas) com o nome de Miss Itália (em 1947 seriam introduzidos os maiôs nos desfiles), dando origem à moda das maggiorate fisiche – “fisicamente bem dotadas”, aquelas cujos atributos físicos como seios grandes poderiam abrir-lhes as portas do estrelato. Embora grande parte delas não fosse atriz (pelo menos no início da carreira), não existe aqui nenhuma relação com a prática neo-realista. A não ser pelo fato de que muitas delas ficaram famosas atuando no “Neo-Realismo rosa”, filmes “água com açúcar” que articulavam a pobreza e os temas sociais com a presença de atrizes (especialmente as maggiorate) e atores conhecidos e/ou estrelas das telas. Na época houve alguma crítica a essa sede da indústria por atrizes gostosas, especialmente quando se concediam premiações por atuações consideradas medíocres – a atriz Monica Vitti começou sua carreira como dubladora e emprestou sua voz para muitas maggiorate. Gina Lollobrigida, Silvana Mangano, Eleonora Rossi-Drago e Silvana Papanini, eram alguns dos nomes famosos de estrelas (personalidades das telas…) que não sabiam atuar. Ao contrário delas, Sofia Villani Scicolone não teve tanta sorte (2).

“Em contraste com estrelas de Hollywood,
na genealogia do estrelato de Loren a “mulher rebelde”
se contrapõe ao Amante Latino, ultrapassando o fetichismo 
puro.  Castradora com os homens, essa feminilidade
não se deixa “domesticar” completamente (1)”

sophia loren e mastroianni
Sophia Loren e Mastroianni em Peccato che Sia una Canaglia, 1954

Leia texto do mesmo autor sobre o ator italiano Marcello Mastroianni

Scicolone nasceu em Roma no ano de 1934, mas cresceu na casa dos parentes da mãe em Pozzuoli, perto de Nápoles, retornando à Roma em 1950 como uma aspirante a atriz. Como seus pais nunca se casaram, Sofia teria problemas com a Igreja Católica no futuro, pois essa situação fazia dela uma filha ilegítima. Scicolone trocaria de nome para Sofia Lazzaro logo em seus primeiros trabalhos posando para fotonovelas e em seu primeiro papel no cinema em Il Voto (direção Mario Bonnard, 1950). Alguns filmes depois, ela foi escalada para Africa Sotto i Mari (direção Giovanni Roccardi, 1953) com outro nome: Sophia Loren. Mas sua ascensão não foi nada rápida. Seu sucesso foi limitado nos concursos de beleza devido a um visual que não se enquadrava nas expectativas daquilo que na época se considerava a beleza italiana típica. Diziam que sua pele era muito escura, sua boca muito grande e que ela era muito alta. Além do mais, sua figura sugeria um clima de paixões proibidas, considerado pouco apropriado para uma rainha da beleza. Foi num desses concursos que o produtor Carlo Ponti a conheceu, arrumou alguns testes para ela, mas nenhum papel principal. Eles se casariam brevemente e Loren arrumaria outro problema com a Igreja, já que Ponti era casado e na Itália não havia divórcio. Sophia trabalhou em fotonovelas entre 1950 e 1953, quando mudou seu nome para Loren e atuou em muitos filmes num espaço curto de tempo. Nessa época seus trabalhos se concentravam em filmes do Neo-Realismo rosa, um precursor da comédia italiana, na qual Loren se destacaria.

“A partir de Arroz
Amargo, com Silvana Mangano, os produtores
compreenderão qual será o papel da estrela. No início dos
anos 60 do século passado, Loren era a atriz italiana
de maior sucesso (3)”
Sophia Loren e Clark Gable com uma boa “dose” de merchandising em It Started in Naples, 1960
 Lollobrigida e Hollywood  
A participação de Loren em Pizza a Fiado (episódio de O Ouro de Nápoles, direção Vittorio De Sica 1954) garantiu-lhe sucesso e consolida sua associação com a imagem de uma estrela napolitana “bem dotada” – de acordo com Pauline Small, durante algum tempo ocorreu uma “batalha de bustos” em torno da popularidade de Loren e Lollobrigida no ciclo Pão e Amor. Esta e outras comédias marcaram a atriz como uma mulher do povo, de qualidades físicas não tradicionais e uma identidade caipira que a diferenciava de outras aspirantes ao estrelato – ela circulava naturalmente entre as duas correntes da comédia italiana, a rural e a urbana contemporânea. No ano seguinte Loren substitui Lollobrigida em Pão, Amor e… (também conhecida como Escandalo a Sorrento, Dino Risi, 1955), na terceira parte do ciclo Pão e Amor. O padrão das carreiras de Loren Lollobrigida foi por muito tempo análogo. As duas apareceram em fotonovelas e filmes de ópera, e Loren substituiu Lollobrigida no famoso ciclo. Há controvérsias a respeito dos motivos que a levaram a não participar da última seqüência, mas existe a hipótese de que Lollobrigida estava interessada em dar uma guinada em sua carreira, na direção de papéis dramáticos. Neste mesmo ano, Loren embarca para Hollywood, notas na imprensa comparavam as medidas de Loren com as de outras italianas (Mangano e Lollobrigida) e estrelas norte-americanas (Marilyn Monroe e Jane Mansfield) (5).
“O aspecto
mais interessante sobre Sophia Loren é 
a   forma   como   sua   persona
fundiu aspetos da indústria do cinema e da cultura de 
lugares tão distintos,
Itália e Hollywood”
Pauline Small (4)

Embora fosse desconhecida do público norte-americano, a chegada de Loren à Hollywood foi precedida de muita publicidade. Exatamente como no caso de Lollobrigida, que seria identificada como o “rosto da Itália” – sua carreira em Hollywood nunca se materializou. No final dos anos 50, seu lugar já havia sido ocupado por atrizes como Loren e Brigitte Bardot. O exemplo de Lollobrigida é semelhante ao de uma série de estrelas italianas cuja experiência hollywoodiana não vingou – Alida Valli, Pier Angeli, Valentina Cortese, Vittorio Gassman, Marcello Mastroianni; Anna Magnani, que ganhou um Oscar por sua atuação em A Rosa Tatuada (The Rose Tatoo, direção Daniel Mann, 1955), afirmou não pertencer a Hollywood. De acordo com Pauline Small, a carreira de Loren em Hollywood perdeu com a insistência dos produtores na construção de mais uma pin-up, gênero identificado com os soldados e que começava a cair em desuso. A experiência de Loren com comédias também não deu muito certo. Primeiro por causa da barreira da língua (as comédias italianas de Loren eram intraduzíveis, um problema para a comédia no mundo inteiro). Em segundo lugar, os norte-americanos possuíam sua própria tradição de comédia. De acordo com essa perspectiva, o sucesso de produtos do cinema europeu como filmes de aventura, horror e faroeste espaguete, deveria ser atribuído a caráter basicamente visual (não-verbal) de seu conteúdo.

A atriz no filme A Lenda da Estátua Nua, Boy on a Dolphin, 1957

O Drama da Comédia 

Os críticos e a própria Sophia Loren atribuiu seu sucesso inicial na Itália à orientação de Vittorio De Sica. Embora a parceria entre eles tenha alcançado um Oscar com a dramática história de Duas Mulheres (La Ciociara, 1960), David Ellwood afirma que talvez as comédias sejam mais importantes para caracterizar o cinema italiano do pós-guerra do que o Neo-Realismo. Uma análise que tomasse tal rumo poderia mudar a compreensão das trajetórias de Loren, Lollobrigida e do próprio De Sica. Tendo contracenado muitas vezes com o comediante napolitano Totó, Loren atingiu o estrelato em 1954 no papel de uma pizzaiola que trai o marido, em Pizza a Fiado – como conseqüência desse papel, ela foi convidada para comerciais de pizza e sabão (8). Contudo, a partir da confirmação de seu papel como protagonista em Pão, Amor e…, os produtores da Titanus planejavam modificações na fórmula até então vitoriosa que associava a atriz à região de Nápoles. Ainda que desencadeado pela necessidade de substituir Lollobrigida, a mudança não deixa de ser típica da evolução de um gênero ou estilo em que os produtores buscam continuamente o equilíbrio entre a demanda do público por novidades e a proteção do investimento através de fórmulas de sucesso comprovado.

“Tanto quanto 
Lollobrigida, em sua biografia Loren capitaliza
a imagem de alguém que
emergiu da pobreza para a fama” (7)
No filme Ontem, Hoje, Amanhã, 1963
Pão, Amor e… marcou a conclusão de uma fórmula iniciada com Arroz Amargo (Riso amaro, 1949), que associava o corpo feminino com o ambiente rural. Os vestidos das supostas camponesas e supostas trabalhadoras do campo se prestavam muito bem para enfatizar os atributos curvilíneos das atrizes. A dança também cumpria essa função, que evidenciava também o potencial desestabilizador da sexualidade feminina numa época de mudanças sociais importantes na Itália. É o que sugere Small mesmo que, em Arroz Amargo, a dançarina morra no final ou que, em Pão, Amor e…, Loren deixe de dançar mambo na praça da cidade para se juntar a seu par masculino. A partir de certa época, houve uma passagem das atrizes para os atores nas comédias italianas, passando a predominar nas narrativas uma preocupação maior com questões masculinas. Como resultados, Small explica que as carreiras das atrizes “bem torneadas” evoluíram noutras direções. Loren foi tentar a sorte em Hollywood, Lollobrigida abandonou as comédias em busca de melodramas de alto custo de produção, enquanto Silvana Mangano se retirou do cinema popular, ocasionalmente trabalhando em filmes “de arte”, de cineastas como Luchino Visconti e Pier Paolo Pasolini.
“Década de 50, surge na
Itália certo tipo de comédia onde, de forma ambivalente
e também geralmente à custa dos homens, o poder sexual
das mulheres se identifica
com a modernidade” (9)
Loren e Mastroianni 
A parceria entre os dois foi a mais prolífica da carreira de ambos, e ocorreu basicamente no campo da comédia – incluindo várias pertencentes ao período clássico do Neo-Realismo rosa, como Peccato che Sia una Canaglia (direção Alessandro Blasetti, 1954), La Fortuna di Essere Donna (Blasetti, 1955) e A Bela Moleira (La Bela Mugnaia, direção Mario Camerini, 1955). Duas exceções são Os Girassóis da Rússia (I Girasoli, direção Vittorio De Sica, 1970) e Um Dia Muito Especial (Una Giornata Particolare, direção Ettore Scola, 1977). De acordo com Small, apesar de exemplos bem sucedidos como no ciclo Pão e Amor, durante a década de 50 os casais ainda não eram uma prática comum. Em Peccato che Sia una Canaglia, Loren é Lina Stroppiani, considerada por Maurizio Grande como uma figura completamente nova para a comédia italiana da época – guardando semelhanças com o cinema de Frank Capra e René Clair. Como nas comédias rurais italianas, a mulher toma a iniciativa da corte (a cena da praia). Mas neste caso Lina se move com desenvoltura também pelo ambiente urbano de Roma. Nessas comédias, a estrela feminina (e seu corpo bem dotado) era identificada de forma ambígua com a modernidade e o orgulho nacional – e onde o homem estava sempre à disposição para ser usado e enganado… Ao contrário de Loren, Mastroianni tinha um treino em teatro e chegou a se preocupar com a possibilidade de ficar preso a esse tipo de papel no futuro, mas sabia que contracenar com ela nesse filme traria popularidade (10).
Loren e Mastroianni em Um Dia Muito Especial, 1977
“Talvez se possa afirmar
que seu personagem em Um Dia Muito Especial foi capaz
de redimir a atriz em relaçãoaos muitos papéis de mulher-
objeto em sua carreira”
Na opinião de Small, não se pode dizer que as primeiras comédias da dupla Loren/Mastroianni tenham sido “veículos de estrelas” (filmes criados em função de atrizes e atores famosos), mas o mesmo já não se poderia aplicar à suas comédias da década de 60 – por exemplo, Ontem, Hoje, Amanhã (Ieri, Oggi, Domani, 1963) e Matrimônio à Italiana (Matrimonio all’Italiana, 1964) ambos sob a direção Vittorio De Sica. Ainda segundo Small, no primeiro filme, o strip-tease de Mara em frente a Augusto sugere certa ambigüidade. Seria uma exploração do corpo de Loren como pin-up visando à bilheteria e um Oscar, ou uma brincadeira com esse corpo por uma grande estrela segura de seu controle a respeito de como ele pode ser mostrado? Da mesma forma, um pouco antes e sem a presença de Mastroianni em A Rifa (La Riffa, direção De Sica, episódio de Boccaccio ’70, 1962), como o nome indica é o corpo de Loren é a mercadoria definitiva, a recompensa daquele que comprou o bilhete premiado. Embora Pauline Small tenha uma postura positiva quanto ao significado deste tipo de filme, é o caso de questionar até que ponto Loren realmente havia se tornado estrela a ponto de, com sua simples presença na tela, subverter uma lógica machista implícita que envolve a exposição do corpo feminino no Ocidente.
1. LANDY, Marcia. Stardom, Italian Style: Screen Performance and Personality in Italian Cinema. Indiana: Indiana University Press, 2008. P. 122.
2. SMALL, Pauline. Sophia Loren. Moulding Star. Chicago: University of Chicago Press, 2009. Pp. 15-6, 18, 24-6.
3. Idem, p. 102.
4. Ibidem, p. 112.
5. Ibidem, pp. 39, 46-7, 50-1, 54, 61n9, 70-1.
6. Ibidem, p. 55.
7. LANDY, Marcia. Op. Cit., p. 124.
8. Idem.
9. Ibidem, p.158-9.
10. SMALL, Pauline. Op. Cit., pp. 89-90, 102, 107.

Publicado originalmente no Blog Cinema Italiano.

http://www.zonacurva.com.br/o-tragico-filme-b-da-morte-de-sharon-tate/

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