por Elaine Tavares
Comunidades da etnia Anacé, no Ceará, sofrem a violência do Estado e correm o risco de perderem não apenas suas terras, mas também o acesso à água. Tudo isso porque o governo decidiu retirar a água do Lagamar do Cauípe, que é um manancial protegido ambientalmente, para uso de empresas que ficam no complexo industrial: 900 mil litros por segundo, denunciam os indígenas.
A violência contra os povos indígenas não é de hoje. Ela começa com a conquista e desde então segue, sistemática. Dizimar, massacrar, extinguir, essa é a ordem. Por algum tempo, a ideia de aldear as comunidades foi bem aceita, desde que os indígenas se mantivessem lá, quietos, sem reivindicar direitos. Mas, se começam a exigir coisas, como o seu território ancestral, por exemplo, aí a coisa pega. Na queda de braço com os interesses do capital, o Estado nunca está ao lado dos povos originários. Pelo contrário, ainda que a Constituição determine a necessidade de consulta aos indígenas sobre qualquer ação nos seus espaços de vida, se o Estado determina que é de interesse nacional, o desejo dos indígenas nada vale. É assim que as terras originárias vêm sendo tomadas, sistematicamente, ao longo dos anos.
É por isso que em vários pontos do país a violência segue acontecendo, com o desalojo de comunidades inteiras em nome do “progresso”. Mas, na verdade, o progresso alardeado não é aquele que beneficia toda a nação. Ele no geral diz respeito a um grupo ou a uma empresa. É o caso do conflito existente hoje na região de Caucaia, Ceará, área metropolitana de Fortaleza, envolvendo o povo Anacé e a construção do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) que vem interferindo de maneira significativa na vida e tradição dessa etnia, bem como de toda a população daquela região.
Segundo relatos de lideranças locais, na região de Caucaia, desde o início do século XVI há registros documentados sobre a existência dos Anacé, comunidade indígena que ainda resiste até hoje no mesmo lugar que estava quando aqui chegaram os portugueses e as missões jesuíticas. Eles sobrevivem, com sua cultura, mesmo quando o estado do Ceará, desde um decreto de 1863, declarou que ali não existiam mais vestígios de povos originários, visto que, segundo o então governador, as comunidades teriam assumido a religião cristã e não falavam mais a sua língua original. Uma mentira! O povo Anacé nunca se rendeu ao catolicismo, vive até hoje em Caucaia, tem sua própria crença e sua própria língua. E, desde 2006 está integrada a grande Assembleia dos Povos Indígenas do Ceará.
Pois em 1995 o governo do estado iniciou os trabalhos para a instalação, na região, do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, que surgia como um elemento capaz de fundamentar e atender as demandas empresariais, visando beneficiar indústrias de base voltadas para as atividades de siderurgia, refino de petróleo, petroquímica e de geração de energia elétrica. O lugar escolhido para a construção do complexo estava ocupado por famílias Anacé. Desde essa época vem sendo travada uma intensa luta pelo território. Até agora, noventa famílias já foram expulsas de suas terras por conta da apropriação feita pelas obras do complexo, com o beneplácito do governo do Ceará. Mas, restam mais de 300 famílias espalhadas pela região de Caucaia e São Gonçalo do Amarante.
Com o início da operação do terminal portuário em 2002 e a instalação de empresas nacionais e estrangeiras no complexo industrial, os problemas se agudizaram. Conforme contam Paulo e Climério Anacé, a região do Lagamar do Cauípe soma hoje 27 comunidades, sendo a maioria delas formada por descendentes do povo Anacé. A residência de muitas famílias está localizada nas margens da Lagoa e do Rio Cauípe, de onde tiram o sustento e onde podem vivenciar sua cultura original. O Lagamar é um manancial que fica numa Área de Proteção Ambiental e Proteção Permanente, espaço turístico do Ceará conhecido no mundo inteiro, tendo como característica um esplêndido espelho d’água. E o rio Cauípe tem sido esse cenário de disputa e luta dos Anacés troncos velhos e dos seus atuais descendentes. Para se ter uma ideia as comunidades que vivem na beira do Lagamar nunca puderam tirar água da lagoa, pois é considerado crime ambiental. Mas, agora, o governo realiza uma obra que vai sugar a água e transportá-la para as empresas que ficam no complexo industrial. Um contrassenso. Os argumentos do governo dão conta de que em época de cheia o lagamar sangra e por isso a água pode ser retirada. Mas, a questão é: se sangra e não importa tirar a água, por que para as comunidades é proibido? E o que acontece quando não sangra, em época de estio?
A área dos Anacé passou a ser tema de processos de demarcação desde 2010 quando a luta se fortaleceu e as demandas por território foram apresentadas. Mas, o governo do Ceará faz vistas grossas ao assunto e não mobiliza qualquer força para dar andamento e conclusão do processo. Tudo isso possivelmente porque a região contestada está justamente às margens do complexo, espaço de cobiça de muitas empresas. “Nossa luta por direitos sempre foi dura e muitas vezes tivemos que lutar com os meios possíveis para não perder tudo. Seja os parentes do Bolso e do Mato que já perderam suas terras para o CIPP (Complexo Industrial e Portuário), seja os parentes da Japuara que lutam pela retomada da Lagoa do Barro. Agora, nós, do Cauípe, fomos para cima do governo do estado desde que ele quis utilizar a necessidade de água do povo como moeda de troca pelas águas do Cauípe, para uso das indústrias do CIPP”, conta uma das lideranças, Paulo França Anacé, morador do Planalto Cauípe. Segundo ele, as mais de 20 mil pessoas que vivem próximas ao complexo acabarão prejudicadas com a obra de retirada das águas. Além disso, a região é de proteção permanente, não tem cabimento uma obra dessa natureza.
Agora, com as obras de perfuração e de colocação dos canos que levarão a água do lago até o complexo, muitas famílias estão tendo que sair do seu lugar de moradia, espaço que ocupam uma vida inteira. E, de acordo com a população, bem como os coletivos jurídicos independentes que atuam junto aos Anacé, todo o processo para retirada das comunidades é ilegal. Além disso, os poços que o governo alega ter instalado para o fornecimento e abastecimento de água para as comunidades de Cauípe não funcionam, uma vez que a maior parte da água do rio será mesmo destinada para as empresas do complexo. O governo diz que vai puxar 200 mil metros de água por segundo, que é a vazão de sangramento, mas as lideranças comunitárias denunciam que serão cerca de 900 mil litros d’água por segundo, sendo que as empresas ainda terão isenção de 50% pelo uso. Ou seja, o governo tira a água das gentes, ameaça uma região de ecossistema frágil e praticamente doa a água para as empresas. Assim, o que vivem os Anacé do Ceará não é somente a luta pelo seu território, mas também uma espécie de guerra pela água.
E justamente por conta dessa batalha pelo direito à água as comunidades realizaram, no final do ano passado, atos e fechamentos da estrada CE 085, trancando o tráfego desde Caucaia até as empresas, impedindo o escoamento dos produtos das empresas que ficam no complexo industrial portuário. A reação do governo de Camilo Santana (PT) foi a mesma de sempre, de todos os governos que se aliam ao capital: repressão. Assim, a resposta foi rápida e violenta com o uso das tropas estaduais, bem como a sistemática ameaça e tortura psicológica. Várias famílias tiveram suas casas derrubadas, indígenas foram algemados e levados à delegacia de crimes penais comuns. Tudo por resistir a esse projeto que retira deles as águas do Cauípe e os deixa, indígenas e natureza, em situação de fragilidade.
Mesmo depois dos atos de fechamentos das vias e da violência policial, que expôs de maneira clara a toda gente o drama dos Anacé, o governo se recusa a realizar audiências públicas para discutir a situação. Aos Anacé resta a tentativa de publicização da luta através de veículos de comunicação não-comerciais, visto que a mídia local, como sempre, é aliada do governo e do empresariado.
Conforme narra Verônica Oliveira, militante da causa no Cauípe, também o judiciário cearense mantém seus olhos fechados ao drama das comunidades, pois, apesar de a comunidade conseguir barrar a obra de escavação e colocação dos canos para a retirada da água por um curto período de tempo,, o Governo do Estado do Ceará derrubou a liminar e tudo continuou. Vale ressaltar que a liminar que embargou a obra pedia o posicionamento da Funai sobre o tema, já que a região tem a presença indígena, mas a Funai nunca se manifestou, abandonando os Anacés a própria sorte, informa Verônica. Por conta disso, as obras continuam e as comunidades seguem sendo perturbadas dia e noite pelas forças do capital, ameaçadas com tropas militares e até com helicópteros. A pressão para que abandonem o território é diária. Segundo os Anacés, a FUNAI e outros órgãos federais, que poderiam ajudar no diálogo com o governo cearense, têm-se mostrado completamente distantes, sem considerar o sofrimento do povo indígena.
Ainda assim o povo Anacé resiste. Para as famílias que ali vivem, o Lagamar do Cauípe não é uma paisagem que pode ser especulada. É um espaço que precisa ser protegido da sanha do capital. Ali, naquelas águas vivem seus deuses, passeiam os espíritos. Mas, para o governo e para as empresas isso não tem qualquer valor, e a água do Cauípe segue sangrando em direção ao complexo, embutida nos tubos pretos, anunciando a destruição de uma das regiões mais belas do Ceará.
Publicado originalmente no Instituto de Estudos Latino-americanos.