A cada ataque mais veemente do arbítrio, surgem novos textos opinativos reafirmando a saúde da democracia brasileira. As instituições funcionam, as liberdades sobrevivem, há eleições. Os vaticínios catastróficos da esquerda falharam. O governo de Jair Bolsonaro pode ser medíocre, mas segue os padrões do estado de Direito.
Essas afirmações dependem de significados muito convenientes de “ditadura” e “fascismo”, baseados no Brasil de 1964 ou em referências estrangeiras de um século atrás. Também reduzem a ideia de democracia a um conjunto de ritos e estruturas burocráticas que pouco significam sozinhos. Os despotismos atuais, tão criticados, usam as mesmas desculpas.
As eleições passadas transcorreram nos escombros de um golpe parlamentar. Seu fracasso vergonhoso estigmatizou ainda mais a classe política, fortalecendo a agenda revolucionária do bolsonarismo. Nesse ambiente, o apoio midiático à Lava Jato virou uma campanha maciça a favor da ideologia anticorrupção, com óbvios efeitos persuasivos sobre o eleitorado.
A disputa vencida por Bolsonaro foi tudo, menos democrática. Sua campanha beneficiou-se de um episódio policial suspeito, espalhou ameaças, agrediu oponentes e cometeu crimes eleitorais em escala inédita. Empresas e órgãos públicos engajaram funcionários na militância bolsonarista. Comícios de estudantes foram impedidos, a propaganda petista censurada.
Mas nada supera a conspiração judicial que tirou da disputa o favorito das pesquisas, julgando seu caso em tempo recorde, condenando-o por “crime indeterminado”. Promotores federais armaram conchavos clandestinos com veículos de comunicação e grupos de militantes para incentivar o voto em Bolsonaro. Enquanto perseguiam seus opositores.
A tentativa de criminalização do jornalista que revelou esses escândalos mostra o nível de cidadania vigente. Outro “caso isolado”, de tantos que já parecem habituais: manifestações pacíficas oprimidas, vídeos e textos proibidos, apologias oficiais ao nazismo, execuções e atentados impunes, a inviabilização do trabalho de artistas e acadêmicos.
São as instituições em pleno funcionamento. Os Poderes divergem no máximo entre círculos hipócritas e raivosos, uns dissimulando a perenização da inconstitucionalidade, outros vazios de quaisquer escrúpulos. Legislativo, Judiciário e Executivo se equilibram numa luta por hegemonia, ávidos para imporem suas respectivas agendas antipopulares e despóticas.
Esse “normal” é o fato consumado, que os negacionistas tratam como a ameaça perpétua de si mesmo. Os sintomas bastam para conhecermos tanto a doença quanto o antídoto democrático que deveria preveni-la. Um Bolsonaro não chega ao Planalto sem que algo tenha se perdido no trajeto, algo cuja ausência nenhuma fantasia resistente conseguirá suprir.
Revela-se aí o custo da aventura irresponsável que unificou a direita brasileira pela destruição sistemática do lulismo. Não importa a lisura do objetivo. Os métodos foram (ou precisaram ser) ilícitos, e assim passaram a definir a natureza do resultado. O Regime de Exceção é indissociável da tirania de milicianos que ele ajudou a materializar.
A ausência de rupturas drásticas significa apenas que elas se tornaram desnecessárias. Uma imprensa que naturaliza a tramoia eleitoral da Lava Jato não irrita os censores. Um STF que ignora a suspeição de Sérgio Moro dispensa baionetas. As polícias garantem o silêncio das ruas, enquanto o império da pós-mentira performa sua liberdade de hospício.
O fascismo jamais destruirá as fontes institucionais de sua obscena legitimação.
Publicado originalmente no Blog do Guilherme Scalzilli.