por Urariano Mota
Há 10 anos escrevi:
“O que toda a gente lê em Manuel Bandeira, no livro Itinerário de Pasárgada, longe está de ser uma verdade íntima, única e exclusiva do poeta, neste luminoso parágrafo:
‘Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes últimos em cotejo com a densidade daquela quadra distante’.
Mas é preciso experiência, é preciso tempo para ver e sentir o paradoxo da infância mais rica que a maturidade. E, a esta altura da idade e do parágrafo, veio uma lembrança da passagem dos anos.
Então lembrei a bunda de Kim Novak, que descobri na infância em uma escondida revista Playboy. Parece que foi ontem, que digo?, parece que foi hoje, agora mesmo, nesta manhã. Depois, enquanto escovava os dentes (é sempre bom fazer essas coisas mecânicas com o próprio ser em outro lugar), eu me perguntava, sim, que mais?
O cérebro, resistente, vagava por lugares e tempos mais longes. Vagava nos ciúmes que eu tinha por uma moça mais velha, porque ela recebeu namorado diferente de mim. O cérebro andava por brinquedos fundamentais, como o desenho a carvão nas calçadas, o cérebro viajava por, o quanto isto é fundamental (é isso, a gente escreve também para se descobrir), um boneco negro de nome Benedito, que um ventríloquo trazia para a frente do mercado público de Água Fria. O boneco falava, e me persegue até hoje. É um sonho que não me deixa. Eu sempre pedia à minha mãe, quando ela saía: “quando voltar, me traga o boneco que fala”. O cérebro vagava mais longe, até a minha cadela Xandu, uma cadela com olheiras, que um carro matou. O cérebro vagava mais, até que eu notei, enfim, que os anos mais dignos de serem vividos, revividos, estão na primeira infância”.
Assim foi há 10 anos. Mas foi preciso alcançar esta sexta-feira para conhecer uma outra felicidade tão digna quanto a da primeira infância. Eu me refiro aos amigos e companheiros que nos fizeram ser o que somos, que só pude conhecer e reconhecer quando concluí o romance “A mais longa duração da juventude”. Então hoje, quando sei o que antes não sabia, me pergunto: o que eu seria sem esses amigos? O quanto deles incorporamos à nossa consciência? O quanto deles fizemos espelho para o nosso próprio rosto? Então descobri esta revelação no romance:
“A resistência, que é vida, se faz na brevidade pelas ações e trabalho dos que partiram e partem. Mas nós, os que ficamos, não temos a imobilidade da espera do nosso trem. Nós somos os agentes dessa duração, o trem não chegará com um aviso no alto-falante, ‘atenção, senhor passageiro, chegou a sua hora’. Até porque talvez chegue sem aviso, e não é bem o transporte conhecido. O trem é sempre de quem fica. E porque somos agentes da duração, a nossa vida é a resistência ao fugaz. Nós só vivemos enquanto resistimos. Nós alcançamos a imortalidade, isto é, o que transcende a sobrevivência ao breve, porque a imortalidade não é a permanência de matusaléns decrépitos, nós só a alcançamos pelo que foi mortal, mortal, e sempre mortal não morreu. A paixão é isto, o trompete de Louis Armstrong, a voz de Ella Fitzgerald, aquela pergunta de Luiz do Carmo em frente ao Cine São Luiz, ‘como vais escutar Ella se não tens vitrola?’ E eu apenas olhava o Capibaribe, e apertava o disco de Ella contra o peito, e me falava ‘eu a tenho perto de mim, não importa onde irei escutá-la. Ela é a minha negra de peixe-de-coco. Vai ser a senhora da noite, das horas malditas’. Aquilo que num poema Goethe gravou: ‘Deve mover-se, obrar criando / Tomar sua forma, ir-se alterando / Momento imóvel é aparência. / Na eternidade em disparada / Que tudo arruína / Que tudo arruína e leva ao nada / Somente o ser tem permanência’ ”
O quanto demoramos ser o que deveríamos. Quantos caminhos tortos, até descaminhos, passamos. Então, aos amigos, às amigas, à companheira, às mulheres, a todas as riquezas que os bravos nos legaram, agradeço muito. Sei agora que sou devedor, assim como sei também que jamais conseguirei pagar tão imensa dívida.