por Carlos Fico
Se consumado, o impeachment de Dilma Rousseff será um duro golpe na democracia brasileira, inclusive em função da banalização desse instrumento, que, nesse caso, terá sido usado duas vezes no Brasil em pouco menos de 25 anos. “Que país é esse” – para citar frase de tristíssima memória – no qual temos de recorrer ao impeachment com essa frequência?
Será, também, um tremendo golpe político baseado em injustiça gritante, afinal, até o presente momento, a presidente Dilma Rousseff não foi acusada de envolvimento na Operação Lava Jato e o crime de responsabilidade que se menciona (“pedalada fiscal”) é cometido por virtualmente todos os governantes brasileiros há muito tempo.
É essa percepção de injustiça flagrante que leva muitas pessoas a chamar a tentativa de impeachment de “golpe”, seguramente querendo dizer “golpe de Estado”. Não é o caso, mas algumas circunstâncias são de fato agravantes da mencionada injustiça. Por exemplo, diversos parlamentares condutores do processo são suspeitos de crimes diversos, o início do processo foi corrompido por espírito de vingança, a própria motivação do pedido de impeachment não repousava em convicções fortes (o documento inicial é débil). Outros exemplos poderiam ser citados.
A palavra de ordem “não vai ter golpe” deu oportunidade aos defensores doimpeachment para que afirmassem o óbvio: ele está inscrito na Constituição. Isso desviou a discussão para o terreno jurídico, que não frutificará. Aliás, ao contrário do que muitos dizem, a caracterização das “pedaladas fiscais” como crime de responsabilidade não é impossível, de modo que a discussão legal no contexto de um processo político é vã. Tudo se resume ao número de votos de que dispõe o governo e à capacidade que tem de postergar a decisão final. Se o Congresso aprovar o impeachment, dificilmente o STF desfará a decisão pois, nesse caso, teríamos crise institucional sem precedentes. A palavra de ordem “não vai ter golpe” também provoca uma contradição, uma desnecessária dificuldade de natureza racional: se o processo deimpeachment é entendido como golpe, a atuação parlamentar que busque impedi-lo não o estaria legitimando? Lembre-se, finalmente – sem querer fazer paralelismos indevidos – de que, pouco antes de 31 de março de 1964, setores da esquerda garantiam que não haveria golpe: “se a direita levantar a cabeça…”
Se não estamos vivendo plenamente um golpe de Estado no momento, certamente estamos vendo sinais expressivos de adesão a soluções fáceis e autoritárias, sobretudo essa, do impeachment, para resolver a insatisfação com o governo (que, no presidencialismo, se resolve com a próxima eleição). Muitos outros indícios de autoritarismo têm sido vistos em relação a outros episódios, especialmente no contexto da Operação Lava Jato, como as ações políticas do juiz e dos procuradores e, muito especialmente, na grande imprensa que, por razões óbvias, despreza os detalhes e aposta na catástrofe. Isso sem falar nas manifestações de violência e autoritarismo da própria sociedade.
O golpe de Estado de 1964 completa 52 anos hoje. Penso que ele tem grande atualidade. Em 2014, nos 50 anos do golpe, escrevi em livros e repeti em dezenas de palestras que repensar o golpe era importante porque isso nos permitia refletir sobre o persistente autoritarismo brasileiro. Tendo em vista o apoio de setores da sociedade ao golpe de 1964, eu dizia: “a questão que se impõe, para mim, é a seguinte: até que ponto a sociedade brasileira aceitou – ou ainda aceita – fórmulas autoritárias para a resolução de seus conflitos?” Parece-me que a questão continua muito atual e a resposta, infelizmente, óbvia.