por Albenísio Fonseca
Último modernista baiano vivo, o escultor, gravador, desenhista, pintor e ex-professor, Mário Cravo Jr., 93 anos, permanece lúcido e produtivo. Sua obra, no entanto, sob abandono, está sob ameaça de ser perdida na esvaziada contemporaneidade baiana. Nas mil e uma faces da sua produção, como se diria de um verdadeiro “rei da sucata”, Cravo tem trajetória marcante pelo reaproveitamento de materiais, como as madeiras do século XIX, provenientes do incêndio que destruiu o Mercado Modelo, no final dos anos 60 – com que produziu uma “via sacra”; cerâmica, ferro e outros metais, oriundos de desmontagens do Polo Petroquímico de Camaçari, que lhe inspirariam a Fonte da Rampa do Mercado Modelo ou o Exu mola de jipe, no MAM-Museu de Arte Moderna de São Paulo, entre centenas de exemplos.
O comodato firmado com o Governo da Bahia, em 1994, quando o governante era Antônio Carlos Magalhães, já se esgotou, mas envolveu a doação de 800 peças, entre esculturas expostas no Parque Metropolitano de Pituaçu, na Orla de Salvador, em cuja entrada foi criado o Parque Mário Cravo Jr, e o que ele denomina de “computações plásticas”. Há três anos, conforme o filho do artista Ivan Ferraz Cravo, 66, “a Sema-Secretaria Estadual do Meio Ambiente, responsável pela área, deixou de efetuar qualquer manutenção nas obras ou fornecer materiais, sequer a tinta para recuperação das peças”. O museu e sua reserva técnica, na entrada do Parque, onde permanecem as obras em papel, estão se deteriorando nas gavetas ou algumas esculturas, expostas às infiltrações, sem nenhum cuidado de conservação. Segundo o filho do artista, que já presidiu a Fundação Mário Cravo Jr., “estamos buscando desesperadamente apoios para salvar o acervo”.
Agora, segundo ele, “parece que a montanha se moveu”. Convocado por Ferraz, o Ipac-Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia e a Dimus-Divisão de Museus da Fundação Cultural do Estado, decidiram proceder a um levantamento do acervo do modernista. A visita inicial de técnicos contou com a participação do diretor do Palacete das Artes, Murilo Ribeiro. Embora o órgão só deva iniciar o cadastro das obras após os festejos juninos e sob a perspectiva de conclusão “até o final do ano”, já se cogita de transferir as instigantes peças – impressas e esculpidas – para ambientes climatizados no Palacete das Artes (Rua da Graça), Museu de Arte Moderna (na Ladeira da Contorno) e Museu de Arte da Bahia (Corredor da Vitória). “O trabalho demanda minúcias e será procedido com todo o critério requerido por museólogos do Ipac”, sinaliza a assessoria do órgão.
As condições de trabalho do artista também se defrontam com as demissões dos seis funcionários que, há 12 anos, finalizam as obras criadas pela mente inquieta de Mário. “A Sema rompeu contrato com a terceirizada Preze, no final de março, exclusivamente para o fornecimento do pessoal para a Oficina de Cravo. Também o servidor João Alberto, da Conder-Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado, precisa ser transferido para a Sema para poder permanecer cuidando da Oficina”, diz Ivan. Há dois meses e de modo informal, o escultor mantém os trabalhadores que capacitou para as atividades. Muitas das peças boiam nas águas poluídas da Lagoa de Pituaçu que já abasteceu Salvador. Outras sucumbem sob a ação do salitre, escondidas em meio à vegetação sem poda do parque metropolitano.
Mário Cravo Jr, conforme o filho, se mantém com a economia de recursos provenientes da venda de suas criações. Uma de suas esculturas monumentais foi adquirida por um dos sócios da Ambev, cujo nome não recorda. Uma réplica em fibra de vidro de “Antonio Conselheiro”, permanece em meio a outras para restauração e ferramentas como tornos e soldas na Oficina. “O original está em Canudos”, enfatiza Cravo. Boa parte de sua produção dialoga com a cidade. A Sereia, em Itapuã; O Exu Mensageiro, em frente à sede central dos Correios, na Pituba; a homenagem a Clériston Andrade (na Avenida Anita Garibaldi) e a Cruz Caída, na Praça da Sé, que toma emprestado o nome do episódio da via crucis para proceder uma crítica à derrubada da Igreja de São Pedro, demolida em 1915 pelo governador José Joaquim Seabra em sua sanha higienista da cidade e no afã de criar novas avenidas na primeira capital do País.
Frente a uma peça em fase conclusão – material procedente de equipamento para contração de temperatura para óleo – o artista decidiu dar nome ao trabalho. “Vai se chamar ‘dinâmica espacial’, batizou. Para Mário Cravo Jr., “não existe trabalho, mas diversão”. Ele reclama da “dificuldade para chegar até o Governador Rui Costa”. Sua última exposição “Esculturas” aconteceu durante o governo Jaques Wagner, em 2013 no Palacete das Artes – museu mais qualificado para abrigar a extensa produção do artista.
O que disseram dele Jorge Amado e Carybé
Sobre ele, Jorge Amado afiaria o teclado da velha máquina datilográfica para cravar a legenda: “Ferreiro coberto de fogo e aço, comido goiva e aço, os bigodes arrogantes, devasso, quase agressivos, os olhos de insônia, a boca em gargalhada, eis o guerreiro Mário Cravo em luta com o ferro bruto, a madeira pesada ilustre, a pedra morta, para sempre morta, mas de repente viva em sua mão, em seu talho, em sua forja, em seu destino deslumbrado e louco, em seu criar sem descanso (…)”.
Carybé revelaria que “…a Bahia deve a Mário Cravo a recuperação do Solar do Unhão e a instalação nele dos museus de arte moderna e de arte popular. Foi por insistência dele que a arquiteta Lina Bo Bardi desistiu da construção de um prédio específico e tratou da restauração do Solar”. No refinado catálogo produzido para a sua última mostra o então secretário de cultura, Albino Rubim, salienta o quanto “o modernismo demorou a aparecer na Bahia. Terra de profundas e fundadas tradições, a Bahia resistiu longo tempo à modernidade cultural”.
Lembra, ainda, que “a primeira geração, nos anos 20, inventou o modernismo no Brasil. A segunda, na década de 30, consolidou o modernismo através do regionalismo e da ampliação do seu público. Orgulhosa de sua cultura, a Bahia se mantinha contrária à modernidade. Só no final dos anos 40 o modernismo vai acontecer na Bahia. Mário Cravo, Carlos Bastos e Genaro de Carvalho são protagonistas desta mudança. A obra dele está disseminada nas ruas e prédios de Salvador e de outras cidades. Encontra acolhida em relevantes museus no Brasil e no mundo”.
Espera-se que este emblemático modernista permaneça vivo para assistir senão à criação de um museu para sua obra, que ao menos possa ver confirmado o resgate das peças sob a ameaça de um injustificado abandono em Pituaçu, no coração da Orla.