“O quanto se é tentado a se deixar prender aí,
“Existem três máscaras:
a que pensamos que somos,
a que realmente somos,
e aquela que temos em comum”Jacques Lecoq
“O cinema de Bergman pode encontrar sua finalidade no apagar dos rostos: ele os terá deixado viver o tempo de cumprir sua estranha resolução, mesmo vergonhosa ou odiosa”. (2) (…). “Em Persona é inútil se perguntar se são duas pessoas que se pareciam antes ou que passam a se parecer, ou, ao contrário, uma única pessoa que se duplica. Não é nada disso. O primeiro plano apenas impeliu o rosto até essas regiões onde o princípio de individuação deixa de reinar. Eles não se confundem porque se parecem, mas porque perderam a individuação, bem como a socialização e a comunicação. É a operação do primeiro plano. O primeiro plano não duplica um indivíduo, assim como não reúne dois indivíduos – ele suspende a individuação”(…)” O primeiro plano é ao mesmo tempo a face e seu apagar.” . (3)
mãos para mim… que mostre seu rosto, que fale comigo !”(4)
O cineasta sueco Ingmar Bergman nasceu em 14 de julho de 1918 e morreu em 30 de julho de 2007.
Sendo cópia, ele agirá por repetição reativa de Deus e não enquanto repetição ativa de si mesmo. Articulando aqui o conceito nietzschiano de eterno retorno pelo ponto de vista deleuziano, repetir Deus equivale a tornar-se ressentido, um homem pequeno…
“O eterno retorno do homem pequeno, mesquinho, reativo, não faz apenas do pensamento do eterno retorno qualquer coisa de insuportável; faz do eterno retorno em si mesmo qualquer coisa de impossível, introduz a contradição no eterno retorno”. (5)
Maria: Estou incomodando?
Médico: Não, tudo bem.
Maria: Porque é tão formal? Não pode deixar o passado ser esquecido?
Médico: Venha cá, Maria. Venha! Olhe-se nesse espelho. Você é bonita. Provavelmente, mais linda do que antes. Mas você também mudou muito. Quero que veja como mudou. Agora seus olhos lançam olhares rápidos e calculistas. Você olhava para frente, diretamente, abertamente, sem máscaras. Sua boca assumiu uma expressão de descontentamento e fome. Era tão macia. Sua pele agora é pálida. Você usa maquiagem. Sua testa bonita, ampla, agora tem quatro rugas sobre cada sobrancelha. Não, não dá para ver nesta luz, mas se vê à luz do dia. Sabe o que causou essas rugas?
Maria: Não.
Médico: Indiferença, Maria. E essa linha fina que vai da orelha ao queixo não é mais tão óbvia, mas é esboçada pelo seu jeito despreocupado e indolente. E lá, na ponta do seu nariz… Por que você funga (6) com tanta freqüência, Maria? Está vendo, você funga demais. Vê Maria? E olhe sob seus olhos as linhas finas (7) e quase invisíveis da sua impaciência e do seu tédio.
Maria: Pode ver mesmo tudo isso no meu rosto?
Médico: Não, mas senti isso quando me beijou.
Maria:: Acho que está brincando comigo. O que está vendo é evidente.
Médico: É mesmo, o que?
Maria: Você mesmo. Porque somos tão parecidos, você e eu.
Médico: Fala… do egoísmo? Da frieza? Da indiferença?
Maria: Costumo achar seus comentários tediosos.
Médico: Não há absolvição para você e para mim.
Maria: Não tenho nenhuma necessidade de ser perdoada.
“Eu me concentro
nos rostos e o fundo é só
acompanhamento”
Ingmar Bergman (8)
Michel Foucault propôs pensar a si próprio e a vida como obra de arte. O Corpo sem Orgãos se aproxima da visão foucaultiana quanto à estética da existência. Levando-o ao vazio, Ingmar Bergman neutraliza a inumanidade do rosto, engendrando essa estética.Lesley Ferris, mostrando o trabalho de Jacques Leqoc, um especialista em manufatura de máscaras, nos dá uma boa visão da importância do rosto e da necessidade de desmistificá-lo. Podemos ilustrar a hipótese de Deleuze e Guattari a partir do conceito de “Máscara Neutra” que Leqoc desenvolveu. Simples, simétrica (…), nenhuma insinuação de personalidade ou expressão. O objetivo é despersonalizar o ator a partir de uma suspensão da identidade facial, proporcionando a experiência de uma fisicalidade que não seja definida pelo rosto. Ferris captou também o comentário feito pelo diretor britânico Peter Brook a respeito da Máscara Neutra…
“O momento que tomamos o rosto de alguém desta forma [como na Máscara Neutra de Lecoq], é a impressão mais eletrizante: inesperadamente encontrar alguém sabendo que a coisa com a qual vive, e que sabe que ela transmite algo todo o tempo, não está mais lá. É a mais extraordinária sensação de libertação. É um dos grandes exercícios que todo aquele que faz pela primeira vez tem como um grande momento: encontrar-se inesperadamente liberado da própria subjetividade”. (9)
Publicado originalmente no Blog Cinema Europeu.
Notas:
2. DELEUZE, Gilles. Cinema 1: A Imagem-Movimento. Tradução Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985. P.153.
3. Idem, p. 129.
4. O grifo é nosso.
5. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Tradução António M. Magalhães. Porto: Rés Editora. P. 99.
6. Na cópia em vhs a legenda utiliza a palavra “funga”. Na cópia em dvd lançada pela Versátil Home Vídeo, em seu lugar encontramos a palavra “escarnece”. Talvez, um sinônimo melhor aqui seria “zomba”. Como eu não conheço o idioma sueco, e na falta de uma edição em inglês ou francês do roteiro para sabermos afinal do que se trata, decidi manter a palavra “funga”, por julgar que o sentido se aproxima mais do conteúdo da cena.
7. Aqui a cópia vhs utilizou a palavra “fina”, enquanto no dvd a palavra utilizada é “aguda”. Novamente, segui meu próprio critério.
8. BJÖRKMAN, Stig. O Cinema Segundo Bergman. Entrevistas Concedidas a Stig Björkman, Torsten Manns e Jonas Sima. Tradução Lia Zatz. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1977. P. 181.
9. FERRIS, Lesley K The mask in western theater: transformation and doubling In NUNLEY, John; MACCARTY, Cara. MASKS. Faces of culture. New York: Harry Abrams Incorporated. 1999. Pp. 245-246. O grifo é nosso.