Zona Curva

O ônibus lisérgico de Ken Kesey

Ken Kesey – Nos anos 60, muitas amarras se quebraram e o ideário de liberdade arrebatou parte de uma geração. Os que não se resignavam chutaram a porta dos caretas oferecendo suas vidas na ânsia por uma nova identidade pessoal. Misto de guru e escritor, Ken Kesey foi O cara dessa época.

Kesey e seu ônibus dos Merry Pranksters mergulhou nas estradas em busca de uma experiência metafísica em junho de 1964. Com a grana do sucesso de seu livro Um Estranho no Ninho, que vendeu (até hoje) a impressionante cifra de 9 milhões de exemplares, Kesey, uma das figuras mais cultuadas da chamada contracultura, comprou um ônibus modelo 1939 e embarcou em uma viagem que partiu das montanhas de San Francisco.

Ken Kesey ônibus further
Ken Kesey e o ônibus com o sugestivo nome Further (foto de Jeff Barnard em 1997)

Ken Kesey nasceu em 17 de setembro de 1935 em La Junta, no Colorado, e morreu em 10 de novembro de 2001.

As desculpas para a viagem foram o encontro com o escritor e psicólogo Timothy Leary em Nova Iorque, que realizava experiências com LSD, e a promoção do segundo livro de Kesey, Sometimes a Great Notion, lançado em 1964. Mas, na verdade, a estrada serviu como o palco ideal para a construção de um universo paralelo em busca do ápice da chamada intersubjetividade, com o auxílio de LSD e maconha. Arnaldo Baptista, ex-Mutantes, resume a tal de intersubjetividade na música Cê tá pensando que eu sou lóki?, do disco Lóki (1974): “ficamos até mesmo todos reunidos numa pessoa só”.

O escritor Tom Wolfe narra a saga no livro O Teste do Ácido do Refresco Elétrico, de 1968. Wolfe não era da turma e quando abordou o grupo, ele próprio confessa que “tudo que sabia a respeito de Kesey é que era um romancista muito conceituado, de 31 anos, e cheio de problemas com drogas”. Em entrevista à revista The Paris Review, feita entre 1992 e 1993, Kesey opinou sobre o livro de Wolfe: “quando ele [Wolfe] esteve no meio da gente, não tomou notas. Suponho que se orgulhe de sua boa memória, que até pode ser boa, mas é a memória dele, não a minha”.

A tradução do livro de Wolfe, feita pelo escritor Rubens Figueiredo e editada pela Rocco, infelizmente só é encontrada em sebos.

O escritor Tom Wolfe (no centro) nos anos 70 (fonte: The Telegraph)

Depois de destacar-se como atleta de luta livre olímpica na adolescência, Kesey foi participar, em 1959, do curso de escrita criativa da Universidade de Stanford, na Califórnia. Por lá, participou de um programa de pesquisas em um hospital com drogas como LSD, psicobilina e mescalina, legais nos Estados Unidos na época. Depois de experimentá-las, Kesey escrevia relatórios para o governo norte-americano. Chegamos à surpreendente conclusão de que as autoridades daquele país incentivaram indiretamente o surgimento do movimento psicodélico.

Nesse texto do site Open Culture, podemos assistir ao vídeo de Kesey em que relata essas experiências. A partir desse momento, ele começou a acreditar no poder das drogas alucinógenas no confronto dos medos pessoais.

Ken Kesey (foto de Roy Jones do Hulton Archive)

A viagem, Kerouac e Hell’s Angels

Depois de participar com seu alter ego Dean Moriaty do romance On The Road de Jack Kerouac, Neal Cassady, agora em carne e osso, foi o motorista do ônibus. O próprio Kesey tenta definir o amigo: “certamente Cassady não tinha o desejo da morte, ele tinha o desejo da eternidade… ele foi um avatar, alguém em contato com outros poderes… [para terminar, Kesey arremata que ele não passava de] um michê e vendedor de carros”.

Kesey e Cassady

Cassady e o poeta Allen Ginsberg ajudaram a fazer a ponte entre Kesey e Kerouac, o encontro rolou durante a viagem que durou cerca de um mês. O colaborador Zonacurva, Guilherme Ziggy, escreveu sobre o encontro em texto publicado por aqui neste blog: “Kerouac passou três horas sentado num sofá, bebendo a cerveja que havia trazido de casa, sem dizer uma palavra sequer, e quando abriu a boca foi só pra reclamar. Reclamar de Cassady, Ginsberg ou do azarado que cruzasse sua linha de visão e ele tirasse pra cristo”.

Wolfe descreve assim o encontro em seu livro:

“Kesey e Kerouac não falaram muito um com o outro. Aqui estava Kesey e aqui estava Kerouac e aqui estava Cassady no meio deles, antes o Deus da Velocidade para Kerouac e toda a geração beat, e agora o Deus da Velocidade para Kesey e toda a — o quê — algo mais selvagem e mais bárbaro que estava rolando pelas estradas. Era como, oi, e até logo, Kerouac era a velha estrela. Kesey era o novo cometa fulgurante do Oeste, indo Deus sabe para onde”.

Vanguardistas podem ser acusados de fuga da vida real pelos conservadores, que encaram a procura pelo novo como apenas a incapacidade em lidar com a real life. A última é confundida com uma existência monótona e conformista e destino inexorável do homem.

Os Hell’s Angels representavam a nova vida real norte-americana e eram tratados com o mesmo desprezo destinado aos hippies por republicanos e wasps. A gangue dos motoqueiros bebedores de cerveja dos Hell’s Angels habitava as estradas do interior dos Estados Unidos. O temperamento dionisíaco de Kesey conseguiu unir seu bando de hippies aos hells em festas intermináveis.

 “Kesey encontrou-se com os Hell’s Angels numa tarde em San Francisco por intermédio de Hunter Thompson, que escrevia um livro sobre eles. Kesey era um sujeito tão corpulento e bruto quanto eles. Tinha acabado de fumar maconha e estava um pouco mole, o que aos olhos dos Hell’s Angels equivalia a uma garantia de ser Gente Boa. Disseram-lhe que não se podia confiar num homem que nunca tivesse ido em cana, e Kesey andara em cana há bem pouco tempo”.

Kesey e um integrante da gangue dos Hell’s Angels (fonte: Rosamondpress)

O teste do ácido elétrico

Os chamados testes do ácido que nomeiam o livro de Wolfe chegaram a reunir centenas de pessoas em uma catártica viagem intersubjetiva. A festa era embalada pelos sons de Grateful Dead, Jefferson Airplane, Janis Joplin e outras bandas.

Os happenings eram realizados em locais diversos (para não atrair a atenção da polícia) e alugados na região de San Francisco nos anos 60:

“um salão de baile surrealista fervilhando com 2000 pessoas, todas com esplêndidas cabeças viradas pelo avesso, indumentárias malucas, maquiagem obscenas, uma roufenha banda de rock e luzes estroboscópicas, uma máquina que produz trovões, balões, flâmulas, equipamentos eletrônicos…”

Foto do site www.magiclovebus.org

Kesey sempre desmontou a lenda que escreveu o Estranho no Ninho (1962) sob efeito de peiote e LSD. “Para mim, sempre foi impossível escrever sob o efeito do LSD. Hunter Thompson pode fazer isso, eu não consigo”.

Kesey ainda esnobava o ato de escrever como uma atividade verdadeiramente libertária: “escritores estão tolhidos por regras artificiais. Tolhidos pela sintaxe. Regulados por um professor imaginário com uma caneta vermelha”.

Em 1975, o cineasta checo Milos Forman transformou o livro em cult movie com Jack Nicholson no papel principal do operário Randle McMurphy, que resolve fingir insanidade para se livrar de uma pena de seis meses. Murphy ilude-se que a vida num hospital psiquiátrico fosse mais tranquila.

O manicômio do livro é uma metáfora da opressiva sociedade norte-americana. Os anti-herois McMurphy e o índio Bromden (narrador da história) questionam, cada um a sua maneira, o status quo vigente.

O filme, que Kesey declarava nunca ter visto, venceu 5 Oscars. Trailer:

Em 2011, o diretor Alex Gibney lançou o documentário The Magic Trip, The Ken Kesey`s search for a kool place. Gibney utilizou imagens que Kesey captou com uma câmera 16mm durante a viagem.

Em 1990, Kesey lançou o livro The Further Inquiry com várias fotos da viagem. A trama coloca o próprio autor, Cassady e outros, como testemunhas de uma espécie de ‘julgamento sobrenatural’. Há dois anos, um grupo resolveu reeditar o roteiro do ônibus de Kesey na Magic Love Bus Journey, acesse o site.

Trailer de Magic Trip:

 “Não havia teologia nenhuma, nem filosofia, pelo menos não no sentido de um ismo. Não havia o objeto de alcançar uma ordem social mais justa, nada que dissesse respeito à salvação, e com toda a certeza nada relacionado à imortalidade ou vida no além. Depois da morte! Isso era piada. Se alguma vez existiu um grupo de pessoas inteiramente dedicadas a viver o aqui e o agora, esse grupo foi o dos Festivos [como Wolfe os chama no livro]”

Aqui cabe o paralelo dessa galera de 50 anos atrás com uma nova geração de vibe semelhante que busca através das experiências coletivas formatar novas realidades. Muitas vezes, o espírito libertário é o mesmo. Imagino Ken Kesey aportando com seu ônibus lisérgico no meio dessa molecada que invade as ruas bloqueando a passagem dos reaças e coxinhas.

Ken Kesey e sua turma
Foto de Roy Jones do Hulton Archive

Obras de Kesey:

http://www.zonacurva.com.br/e-as-cinzas-de-timothy-leary-nos-saudam-do-espaco/
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O ônibus lisérgico de Ken Kesey
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Ken Kesey - Nos anos 60, muitas amarras se quebraram e o ideário de liberdade arrebatou parte de uma geração. Os que não se resignavam chutaram a porta dos caretas oferecendo suas vidas na ânsia por uma nova identidade pessoal. Misto de guru e escritor, Ken Kesey foi O cara dessa época.
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