O jornalismo brasileiro precisa se dar conta de que está usando rótulos velhos para tentar identificar ou descrever novas situações e personagens políticos. Trata-se de uma prática que se automatizou na rotina diária do jornalismo e que começa agora a esbarrar na complexidade do nosso cotidiano neste início da era digital.
A lista de exemplos é grande, mas alguns rótulos aparecem com mais frequência na cobertura diária, como as dicotomias direita/esquerda, capitalismo/comunismo e estado/sociedade civil. São categorias surgidas no século passado, cujo significado está associado a situações e personagens que já viraram história, mas que apesar disto ainda continuam sendo usadas mesmo tendo perdido sua base na realidade atual.
O caso da classificação esquerda, centro ou direita ainda é padrão na maioria dos jornais, revistas e programas jornalísticos em rádios e TVs, na cobertura de eventos políticos nacionais e internacionais. É uma classificação surgida durante a Revolução Francesa, no século XVIII quando os parlamentares se agrupavam à direita ou à esquerda do plenário, conforme sua posição sobre a realeza. Na época, a política era extremamente simples e os fluxos informativos limitadíssimos se comparados com a situação atual.
Mas hoje a situação mudou e os rótulos esquerdista, direitista ou centrista já não conseguem dizer muita coisa sobre as situações e personagens mencionados em reportagens e entrevistas. Os termos esquerda/centro/direita usados atualmente remetem aos tempos da Guerra Fria, quando a direita virou sinônimo de anticomunismo e a esquerda passou a ser vista como simpática ao comunismo, categorias que hoje perderam boa parte de sua consistência conceitual, devido ao surgimento de uma realidade digital muito mais complexa.
É o caso do presidente eleito do Chile, Gabriel Boric, rotulado de esquerdista, adjetivo que o associa a uma posição radical, quando na verdade todo o seu discurso eleitoral e a sua plataforma política podem ser classificados como de centro esquerda. Trata-se de um caso típico de uso distorcido de um rótulo muito comum nas manchetes da imprensa nos anos 60 e 70 do século passado.
Aqui no Brasil, sucede o mesmo, com o ex-presidente Lula. A imagem construída pela grande imprensa nacional ainda o associa ao radicalismo político/ideológico dos anos 80, quando na verdade o discurso atual do provável candidato presidencial do Partido dos Trabalhadores poderia ser classificado de centro esquerda. Tanto no caso chileno como no brasileiro, o discurso político mudou, mas a imprensa não atualizou o seu vocabulário.
A empedernida herança da Guerra Fria
No caso dos rótulos comunismo versus capitalismo, a situação é semelhante. Quando alguém ou algo é classificado como comunista, o leitor ou telespectador médio é levado a associar o conceito à imagem do regime soviético existente na Guerra Fria. Hoje, a China herdou o rótulo “comunista” mas numa realidade totalmente diferente pois o gigante asiático incorporou várias práticas capitalistas em seu modelo econômico e social. Paralelamente, o capitalismo dos “nerds” digitais norte-americanos e europeus está mais próximo do socialismo do que gostariam os ideólogos de Wall Street.
E se formos analisar a velha polêmica entre estado e sociedade civil, é cada vez mais evidente que a fronteira entre ambos os conceitos é cada vez mais nebulosa. Quanto mais a sociedade civil aumenta a sua visibilidade pública e se diversifica, mais ela reclama uma ação estatal para normatizar o caos gerado pela avalanche informativa, por exemplo. Em compensação, os seguidores de um estado forte admitem que a complexidade dos processos sociais aumentou de tal maneira que se tornou inevitável a descentralização administrativa e financeira das questões públicas, como por exemplo, nas áreas da segurança, educação e saúde.
Estes três casos, que representam uma minoria dentro de toda a complexidade do noticiário nacional e internacional, mostram como a maior parte da imprensa mundial acabou prisioneira de um vocabulário condicionado por uma realidade passada e com isto acaba distorcendo as percepções do público em relação aos fatos e fenômenos contemporâneos.
O leitor, ouvinte ou telespectador comum passa batido pela desatualização da narrativa política na grande imprensa, mas como a realidade dos fatos aponta noutra direção, o resultado é um distanciamento em relação às fontes de informação usualmente consultadas pela maioria das pessoas. Esta é uma das razões da migração das audiências para a diversidade informativa na internet.
A atualização do vocabulário político no jornalismo é um processo inevitável, mas ao mesmo tempo complicado, porque torna compulsória a adoção de uma nova maneira de repórteres, editores e comentaristas perceberem o contexto político contemporâneo. Grosso modo, significa abandonar o simplismo e dicotomia nas categorias usadas até agora para mergulhar na complexidade dos fenômenos atuais, onde cada personagem e situação tem características especificas e que muitas vezes são contraditórias e paradoxais.
É normal que ideias e conceitos complexos ou abstratos sejam associados, na imprensa, a expressões simplificadas, principalmente quando incorporados à linguagem corrente. É uma forma usual de comunicação. Acontece que estamos na transição do analógico para o digital, o que implica mudança de contextos e, consequentemente, dos significados atribuídos a palavras e conceitos. A tarefa do jornalismo é, nestas circunstâncias, detalhar os novos contextos para evitar que velhos rótulos acabem distorcendo nossa percepção de uma realidade que muda cada vez mais rápido.
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