por Fernando do Valle
Foi em uma manhã antes de embarcar para Brasília. O deputado estacionou em frente ao espelho ainda com a escova de dentes no canto da boca. Ficou ali por vários minutos, como se o mundo tivesse parado e ficado quieto, e notou os detalhes de seu rosto envelhecido, a careca, as rugas sob os olhos, os pelos escapando do nariz adunco. O clique de desconhecido interruptor o transportou para outra dimensão.
Passou a viver dominado pelo medo, sofria do pânico de que gravassem suas conversas, de que descobrissem suas contas tão bem escondidas (pelo menos o que ele achava até agora) em um paraíso fiscal. Depois da paúra, surgiu um ensaio de arrependimento. O deputado começou a sentir-se diferente, ele mesmo não sabia explicar, censurava assessores boquirrotos, retrucava aliados insensíveis à realidade do país em almoços da bancada, não atendia telefonemas de certos lobistas.
Ao chegar do shopping de mãos ocupadas com sacolas, sua mulher o surpreendeu tomando uísque com o olhar perdido debruçado em um móvel próximo ao parapeito da janela da sala. “Roberto, você anda muito estressado, precisamos fazer uma daquelas nossas viagens”. Ele não respondeu e deu um longo gole na bebida.
O olhar injetado de uma mulher negra de cabelos todos brancos misturava-se agora às memórias de uma vida que parecia não fazer mais sentido. Alguns flashes do passado começaram a envergonhá-lo agora que já beirava os 70 anos.
A raiva nos olhos da negra penetrou fundo pelas suas pupilas que o fez sentir um frio na espinha em uma tarde na última campanha no centro da cidade. Ele ficou ali parado com a mão direita estendida para o aperto de mão, ela não esticou o braço e foi embora. Ele seguiu sua rotina de sorrisos e afagos nas cabeças das crianças embalado pelos gritos de cabos eleitorais.
O deputado sempre se escudou com o argumento íntimo de que nunca desviou dinheiro da merenda, da educação, da saúde. O por fora sempre veio de empreiteiras, multinacionais, banqueiros, ele se punha na conta de um facilitador, ajudava no fechamento de negócios. Nada mais justo que eu receba algo em troca, pensava no chuveiro, afinal de contas não fui eu que inventei a maneira como as coisas funcionam, elas sempre foram assim, até parece que essas merrecas vão fazer falta pra essa empresa, ela fatura isso em uma hora, se conformava.
Ontem o deputado acordou suado aos gritos e sua mulher acendeu a luz do abajur. “Ela falou comigo, me abraçou, a mulher até me deu um beijo rápido no rosto”, urrava agitado. Sua mulher colocou os óculos e de batimento cardíaco acelerado perguntou: “quem? o que você tá falando, tá doido, Roberto?” “Ela, ela… aquela mulher não me odeia”. A mulher do deputado ficou preocupada, no outro dia pela manhã, marcou uma consulta pro marido no psiquiatra mais caro da cidade e cancelou a sessão de botox do próximo dia. “Acho que precisamos viajar mais pro Roberto espairecer”, sussurrou.