Como escritora, editora e, principalmente, leitora, tenho observado um fenômeno desconcertante acometer a literatura nacional: o processo de politização obediente dos novos escritores brasileiros. Muitas vezes tenho a impressão de que a nossa produção literária cortou o cabelo, fez a barba, colocou sapatos de couro, terno, gravata, e agora é o genro que mamãe pediu a Deus. E, sabem: isso me incomoda. Profundamente.
Porque, em minha opinião, a literatura que não lhe sacode; que não lhe tira do lugar onde você confortavelmente está; que não lhe faz repensar; que não desconstrói e bagunça; que não coloca o dedo na ferida e chafurda; é uma literatura inofensiva – logo, irrelevante. Os livros e autores que me conquistaram, e me fizeram compreender o poder da literatura na formação política e social de qualquer cidadão, falavam de sexo, de drogas, de dor, de vida, de desespero – e não de dragões, fadas e gnomos.
Por esta razão, foi com receio – porém com uma sutil esperança – que peguei em mãos a obra O Caminho dos Excessos, do escritor gaúcho Zeka Sixx. O livro, lançado de forma totalmente independente, nada deixa a desejar em relação às publicações de grandes selos editoriais: a obra possui um projeto gráfico primoroso, impressão de extrema qualidade, e uma ilustração divina e fortemente convidativa em sua capa, de autoria do desenhista Asdrubal Fabris.
No entanto, é no conteúdo que O Caminho dos Excessos mostra a que veio. O livro reúne trinta e dois contos autênticos e audaciosos, que versam sobre uma vida perturbadoramente familiar, repleta de exageros e insuficiências. As drogas, o sexo e o ímpeto (auto) destrutivo, inerente a todos os seres humanos, estão lá. Mas também há cólera, há dor, há conflitos pessoais, emocionais, sociais, e um desejo constante e irrefreável de tirar da vida o que a vida tem de melhor e mais imaculado. Aquilo que será capaz de saciar nossa fome e nossa sede de tudo o que não podemos comer nem beber.
Os contos são todos escritos em primeira pessoa, de modo que se colocar no lugar dos personagens torna-se tarefa simples, apesar de desconfortável. Simples, porque reconhecer-se em seus sentimentos e aflições é natural, uma vez que nossas amarguras e pretensões são mais parecidas do que gostaríamos que fossem – por esta razão, a identificação é espontânea. Desconfortável porque O Caminho dos Excessos nos coloca em contato com um lado de nossa personalidade que nem sempre queremos enxergar; que dirá assumir. Falo daquela parte insaciável, geniosa, faminta e constantemente sedenta, que nos faz sentir um vazio dolorido todo dia.
O que também colabora para que tenhamos mais indulgência no momento de questionar, e até mesmo condenar, os personagens inventados (ou deveria dizer retratados?) por Zeka Sixx. As decisões e atitudes que tomam, por mais duvidosas e cruéis que nos pareçam, poderiam perfeitamente ser as nossas atitudes e decisões – e talvez só não sejam porque ainda não tivemos coragem de olhar para dentro, fechar os olhos, e se deixar mergulhar no poço sem fundo que somos.
Zeka Sixx não parece ter medo de ser julgado pelo que escreve, pelo que acredita, e muito menos pelo que vive e experimenta. O que dá vida própria para sua literatura, além de personalidade, legitimidade e força. Não há em O Caminho dos Excessos qualquer tentativa de adequação – bem pelo contrário. É a inadequação, e um certo desajuste existencial, quem dá o tom e a cadência da obra, que gera ao mesmo tempo reconhecimento e desconforto; empatia e repulsa; enternecimento e fúria. Zeka bagunça nossos sentimentos, e nos faz conhecer sensações das quais costumamos fugir. Por medo e por conveniência.
O Caminho dos Excessos é uma grata e pervertida surpresa em uma época de literatura industrializada, pasteurizada e irritantemente comportada. Zeka Sixx despenteou o cabelo, rasgou o terno e a gravata, jogou os sapatos de couro no lixo, e está deixando a barba crescer outra vez. Porque ele sabe que a literatura que não confunde, que não questiona, que não sacode até os ossos, não faz a menor diferença.
E Zeka Sixx simplesmente se recusa a não fazer a menor diferença.
Ainda bem.
Assista ao book trailer de “O Caminho dos Excessos”, criado pelo artista gráfico Eduardo Rutkowski, a trilha sonora é da banda Rosa Tattoada:
Mais informações sobre o livro em http://www.zekasixx.wix.com/ocaminhodosexcessos.