Zona Curva

O apoio da grande mídia ao golpe de 64

Golpe de 64 – Além de criar o clima de pânico, em especial na classe média, que passou a aceitar a quebra do Estado democrático, a imprensa apoiou o golpe de 1964 de maneira quase unânime. O livro Cães de Guarda – jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, da historiadora Beatriz Kushnir, lançado em 2004, e infelizmente pouco conhecido, pesquisou a atuação da imprensa no período da ditadura militar e mostra em cores fortes como as principais empresas de mídia da época (Folha de S. Paulo, O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, Globo e o Correio da Manhã) foram coniventes com o regime.

A exceção entre os principais grupos de comunicação do período ficou por conta do Última Hora, jornal criado pelo jornalista Samuel Wainer em 1951. Única voz entre os principais jornais que deu suporte a João Goulart e suas reformas de base, o Última Hora foi praticamente destruído pelos militares após o golpe. Antes disso, o jornal chegou a vender um total de 500 mil exemplares por dia de suas 11 diferentes edições regionalizadas.

Kushnir declarou recentemente à revista Carta Capital: “eu reviso essa ideia de resistência e mostro que houve, no lugar disso, um grande colaboracionismo, se houve resistência, está nos veículos alternativos e não na grande imprensa”. O bunker contra a ditadura militar se encontrava mesmo em publicações como Pasquim, Opinião, Movimento, Bondinho, Versus e muitas outras.

capa do globo golpe militar
Para o jornal O Globo, o golpe de 64 “restabeleceu a democracia”

Em euforia, o editorial do Globo de 2 de abril de 1964 celebrou a tomada do poder pelos militares com o título “Ressurge a Democracia”,  Roberto Marinho vibrava com o golpe militar em seu jornal: “salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares que os protegeram de seus inimigos. Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais”. O jornalista Cláudio Abramo que chegou a ocupar a direção do jornal Folha de S. Paulo lembra do clima de março de 64:

“Alertei [Darcy Ribeiro, figura próxima a Jango] de que dias antes o dr. Julinho [do jornal O Estado de São Paulo] havia visitado Assis Chateaubriand [conhecido barão da mídia, dono dos Diários Associados], e que aquilo era sinal seguro de que o golpe estava na rua. Porque a burguesia é muito atilada nessas coisas, não tem os preconceitos pueris da esquerda. Na hora H ela se une”.

(trecho do livro “A Regra do Jogo” de Abramo)

 Em 1977, Cláudio Abramo foi afastado da direção da Folha de S. Paulo atendendo a pressões do ministro do Exército, Sylvio Frota, contra a publicação de uma crônica de Lourenço Diaféria no 7 de setembro e tida pelos militares como ofensiva à memória do Duque de Caxias. Abramo chama em seu livro  o outro jornal do Grupo Folha, a Folha da Tarde, de “jornal sórdido”.

Kushnir se debruçou sobre a história da Folha da Tarde. O FT mudou radicalmente de lado com a edição do AI-5. Até 1968 era um jornal inquieto, que concorria diretamente com o irmão mais novo do Estadão, o Jornal da Tarde. A Folha da Tarde foi criada em 1º de julho de 1949 com o slogan “o vespertino das multidões”.

Durante uma década e meia sob o comando de policiais, a Folha da Tarde foi apelidada de a de “maior tiragem”. Os jornalistas-tiras, chamados de cães de guarda por Kushnir, que trabalharam por lá, tinham jornada dupla na Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. Eles “legalizavam” as mortes decorrentes da tortura em seu trabalho na redação, noticiando-as como assassinatos em trocas de tiros. Com informações de dentro do aparelho repressor, a Folha da Tarde chegou ao absurdo de antecipar em suas manchetes algumas mortes de militantes.

O outro codinome do FT na época era o Diário Oficial da Oban (Operação Bandeirante). A Oban foi um centro de informações e tortura montado pelo exército para coordenar a repressão e deu origem ao famigerado Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) que, em São Paulo, na rua Tutóia, torturou e matou muitos opositores ao regime.

O relatório da Comissão Nacional da Verdade, divulgado na semana passada, confirma os estudos de Kushnir e declara que o Grupo Folha forneceu apoio financeiro, ideológico e material à repressão e que veículos do jornal foram utilizados pelos militares responsáveis pela repressão.

 

Capa da Folha da Tarde em 8 de setembro de 1971 com a foto da parada militar de 7 de setembro (fonte: livro Cães de guarda)

“É a história de 64. A mídia começou a implorar o golpe desde 62. Tão logo o João Goulart assumiu o lugar do senhor Jânio Quadros, inventaram o parlamentarismo, aquela coisa grotesca. Desde aquele momento, a mídia começou a querer… E quem estava  bravo aparentemente, onde estava a espuma? Nos quartéis. Então são eles que vão fazer o serviço sujo. Mas quem pensa que o golpe foi militar, a meu ver, está enganado. O golpe foi desse poder que está aí até hoje. Até hoje. Os militares são os gendarmes que executam o serviço. Depois de um certo momento, eles até gostaram do poder. O poder empolga.”

 (jornalista Mino Carta, em entrevista à Revista Caros Amigos número 105, de dezembro de 2005)

Nos dias 21/9/1971 e 25/10/1971, carros do Grupo Folha da Manhã foram incendiados por militantes de esquerda. A ação foi uma represália à empresa por ceder automóveis ao Doi-Codi que, com esse disfarce, tinha facilitado seu trabalho de criar emboscadas para a prisão de ativistas.

Em editorial na Folha da Tarde e Folha de S. Paulo no dia 22 de setembro de 1971, a Folha se defendeu atacando ‘os que procuram disfarçar sua marginalidade sob o rótulo de idealismo político’ e que ‘da opinião pública, o terror só recebe repúdio’ e emendou loas ao regime: “como o pior cego é o que não quer ver, o pior do terrorismo é não compreender que no Brasil não há lugar para ele. Nunca houve. E de maneira especial não há hoje, quando um governo sério, responsável, e com indiscutível apoio popular, está levando o Brasil pelos seguros caminhos do desenvolvimento com justiça social”.

 Na época, o jornal clandestino Venceremos, da ALN (Aliança Libertadora Nacional), grupo que lutava contra o regime militar, respondeu ao editorial: “ Octávio Frias [proprietário da Grupo Folha] denunciou-se ao povo que realmente é um fascista convicto e colaborador da repressão brasileira”.

O Grupo Folha parece não se envergonhar de seu triste passado. Em recente editorial, a Folha defende a lei de anistia e considera os crimes praticados pelo regime militar “página virada”. Em 17 de fevereiro de 2009, em outro editorial , em desrespeito às centenas de mortos e aos milhares de perseguidos, o jornal chamou a ditadura brasileira de “ditabranda”.

Caminhonete da Folha de São Paulo incendiada por militantes em 1971 (fonte: Carta Capital)

“Não quero dar a entender que a autocensura e o colaboracionismo tenham sido praticados pela maioria dos jornalistas, pois isso está longe da verdade. Muitos dos que “combateram” as práticas do Estado pós-1964 e pós-AI-5 ficaram desempregados, foram encarcerados e perseguidos. Muitos jornalistas desempenhavam uma militância de esquerda – de simpatizantes a engajados – e padeceram (muitas vezes com marcas na própria pele) por tais atitudes”.

 (Beatriz Kushnir, em seu livro “Cães de Guarda, jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988”)

A partir da radicalização do regime com o AI-5, a grande imprensa se viu vítima dos ditadores que tinha apoiado e suas redações passaram a contar com a presença de censores. Com isso, alguns jornais passaram a publicar versos e receitas de bolos no lugar de matérias para indicar de maneira subliminar que estavam sob censura. A prova de que a estratégia não deu muito certo foram as constantes ligações recebidas de leitores revoltados com seus fracassos culinários ao colocarem em prática as receitas publicadas nos jornais.

O Grupo Estado de São Paulo apoiou com entusiasmo o golpe civil-militar e, por volta de 68, o jornal foi alijado do centro do poder e passou a contar com censores nas redações do Estadão e do Jornal da Tarde. No espaço das matérias censuradas, passou a publicar poemas de Camões.

Antes do golpe, a família Mesquita, dona do jornal, chegou a participar de um grupo de extrema direita anticomunista sob a liderança do coronel (à época) João Paulo Moreira Burnier. Em pleno ano de 68, por acreditar que o Brasil respirava muita liberdade, o insano Burnier tramou o Plano Para-Sar. A trama tresloucada do militar previa a explosão do gasômetro do Rio além de outras explosões em vias públicas na cidade. O caos e as mortes seriam colocadas na conta dos grupos de esquerda, justificando mais repressão do governo. A tragédia foi evitada pelo capitão Sérgio Miranda de Carvalho, Sérgio “Macaco”, que comandava o Para-Sar, grupo de elite da Força Aérea, que se recusou a participar do plano.

O general Castelo Branco, primeiro presidente da ditadura, cumprimenta Octavio Frias de Oliveira, proprietário da Folha de S.Paulo (fonte: Outras palavras)

Após o suporte ao golpe militar dado pelo jornal O Globo, o canal de televisão de Roberto Marinho, que começou a funcionar em 26 de abril de 1965, teve sua contrapartida do governo Castelo Branco. O governo permitiu a venda das ações das Organizações Globo à corporação americana Time-Life, por 6 milhões de dólares, para a compra de equipamentos. Pela lei, a operação era ilegal, pois era proibida a participação estrangeira em empresas brasileiras de comunicação.

Vídeos de Rede Globo em apoio à ditadura militar:


A partir de 1968, Marinho resolveu evitar dor de cabeça aos militares e começou a praticar a autocensura. Para isso, contratou o ex-diretor do Departamento de Censura da Guanabara para se alinhar ao pensamento do governo e criou uma assessoria especial dentro da empresa que contava até com militares como o coronel Paiva Chaves.

Roberto Marinho de braços dados com o ditador João Figueiredo

Recentemente, o jornal O Globo reconheceu que o apoio ao golpe militar foi um “erro” e que o jornal “acreditava que os militares reconduziriam o Brasil à democracia” (!!). A matéria veiculada no Jornal Nacional em setembro de 2013 ainda ressalta que, em 1984, Roberto Marinho publicou editorial em que se mantinha fiel aos ideais da “revolução de 64”. Surreal. Assista ao pedido de desculpas:

No dia 15 de dezembro, o Globo fez coro à Folha e em editorial http://noblat.oglobo.globo.com/editoriais/noticia/2014/12/ampla-e-irrestrita.html considerou “lamentável” a possível revisão da lei de Anistia que permitiria a punição de torturadores e criminosos do regime militar.

Desenho de Carlos Latuff

Em vídeo recente, um indignado Mino Carta explica os motivos que levam a grande imprensa à defesa da manutenção da lei de anistia:

Fonte: Cães de Guarda (Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988), de Beatriz Kushnir.

Senado devolve simbolicamente mandato de Jango

Summary
Article Name
O apoio da grande mídia ao golpe de 64
Description
Golpe de 64 - Além de criar o clima de pânico, em especial na classe média, que passou a aceitar a quebra do Estado democrático, a imprensa apoiou o golpe de 1964 de maneira quase unânime. O livro Cães de Guarda – jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, da historiadora Beatriz Kushnir, lançado em 2004, e infelizmente pouco conhecido, pesquisou a atuação da imprensa no período da ditadura militar e mostra em cores fortes como as principais empresas de mídia da época (Folha de S. Paulo, O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, Globo e o Correio da Manhã) foram coniventes com o regime.
Author
Publisher Name
ZonaCurva Mídia Livre
Sair da versão mobile