por Guilherme Scalzilli
O acórdão do TRF-4 que condenou Lula reúne duas narrativas fortes e complementares. De um lado, o retrospecto de eventos criminosos imputados ao réu, tecendo as delações e os indícios materiais em função de um raciocínio preestabelecido. De outro, o programa ético que permitiu à corte ignorar os desvios morais e legais usados na construção dessa retórica e na busca do objetivo prático de impedir a candidatura do petista.
Os desembargadores ofereceram diversas pistas de que houve uma articulação prévia dos seus votos. Essa sintonia serviu para amarrar a miscelânea de elementos da peça condenatória, harmonizando a denúncia do Ministério Público e a sentença de Sérgio Moro. A ideia era criar uma história coesa, que se afirmasse a partir do efeito de verossimilhança, dando-lhe o maior didatismo possível.
A obstinação em asseverar a veracidade dos indícios, sem exibir os instrumentos que permitiram atestá-la empiricamente, mostra que a corte estava cônscia dos pontos frágeis do enredo. Por isso lançou mão da teoria do domínio do fato, que, descaracterizada, serviu de equivalente jurídico para as convicções dos promotores.
Assim nasceu o infame “ato de ofício indeterminado”, excrescência jurídica usada para encaixar o tríplex nas falcatruas da Petrobras. É como se os desembargadores dissessem “não sabemos por que estamos condenando Lula, mas ele sabe que merece”. O raciocínio soando plausível, a conclusão do público vira “nós sabemos que merece”.
Não deixa de ser curioso que a própria viabilidade prática da trama condenatória tenha exigido uma estripulia malvada. Em mais uma evidência indisfarçável de arranjo no acórdão, as penas coincidiram, todas aumentadas para impedir que o “ato de ofício indeterminado” prescrevesse e para reduzir as chances recursais de Lula.
Aí entra o imaginário punitivista. “Ninguém está acima da lei”, o jargão repetido pelas cortes, blinda a narrativa do TRF-4 com outra narrativa inquestionável, endossada pelo uso proverbial comum. Direitos viram privilégios. Quem rejeita a condenação de Lula se compromete com a sua inocência e com a impunidade em geral.
Ambos os enredos compartilham a premissa ética: os respectivos fiadores institucionais conciliam a autoridade enunciativa de um e o espírito punitivista do outro. O rigor naturaliza os arbítrios que legitimam a condenação, que por sua vez reafirma a premissa inflexível do “novo paradigma” da excepcionalidade.
Na época das mentiras transformadas em “pós-verdades”, era previsível que a condenação de Lula tivesse caráter mais narrativo do que propriamente jurídico. O regime da versão dos fatos é fechado na subjetividade, basta por si, enquanto o regime do factual é aberto ao escrutínio público e à contestação.
A mencionada articulação dos votos foi uma demonstração de força do TRF-4. Exibindo sua união com o Ministério Público e com Sérgio Moro, aumentando a pena para não perder o controle dos recursos que envolvem provas e fazendo comentários valorativos sobre a administração Lula, os desembargadores assumem postura magnificente, para não dizer confrontativa, diante dos adversários da Lava Jato.
Esse gesto incorpora uma espécie de mensagem exemplar de superioridade corporativa, não apenas sobre a esfera política, mas principalmente sobre Lula. De tão escancarado, o viés ilegítimo da condenação acaba servindo como sinal de menosprezo, uma descompostura para colocar o réu “no seu lugar”.
Aqui a injustiça também desempenha papel educativo. O lugar imaginário de Lula e do PT é o daquela plebe vulgar do mundo político que alimenta as estatísticas seletivas da Cruzada Anticorrupção. Algo como o “ato de ofício indeterminado” jamais seria usado contra políticos do PSDB paulista, por exemplo, mas é exatamente essa certeza que realça a insignificância jurídica das vítimas.
A narrativa já conota vexame: ex-presidente da República condenado por um esquema de corrupção bilionário que lhe rendeu… reformas num apartamento no Guarujá e num sítio em Atibaia. Só pode soar, se não ridículo, indigno para os padrões nacionais de malfeitoria. Nem roubar direito essa gente sabe.
Confronto, humilhação e rigor confluem no recolhimento do passaporte de Lula e na ameaça da prisão imediata. Atos de provocação, mas também de alerta, que mantêm o petista e sua militância na defensiva, “na linha”, para não serem castigados. Longe da atenção internacional, fora da campanha, baixando o tom das críticas. Sem contestar a narrativa hegemônica da Instituição.
A arrogância é o tempero dessa performance agressiva: silencia os modestos e puxa os atrevidos para uma briga que eles não conseguiriam vencer. Quanto maior a reação, melhor, mais enfática será a afirmação de poder que a reprimirá. E, caso necessário, aperta-se um pouco mais o torniquete, jogando a culpa nos radicais.
A mensagem que os jovens assoberbados da Lava Jato transmitem ao país é assustadora. E há um pouco de estratégia na perplexidade que ela provoca, em plena disputa eleitoral, num cenário de polarização e ressentimento. Nesse contexto, a frase “Ninguém está acima da lei” ganha o aspecto de uma premonição macabra.
Publicado originalmente no Blog do Guilherme Scalzilli.