Zona Curva

Não acredito, pai

Não acredito, pai
Que pela primeira vez na vida
Decidiu me dar banho
Mas porque só agora
Quando a mamãe saiu?
Não acredito, pai
Que vai me vestir com a saia
Que a mamãe disse curta demais
Aonde aprendeu fazer tranças, pai?

Estou feliz, vamos observar a lua
Logo você, que mal para em casa
Está sempre dormindo
E sem tempo pra mim
Hoje me chamou de “minha bebezinha”
Está tão amoroso, pai
Mas ainda é estranho
Porém, não posso desperdiçar
Um momento único com meu pai

Queria que a mamãe também estivesse
Mesmo com você dizendo ser um programa
De pai e filha

Eu com treze anos
Não tão velha para sentar em seu colo
A saia curta subiu demais
“É só seu pai que está aqui, fique tranquila”
E ao ver a bela lua cheia
Ouvi seu zíper abrir
Senti algo duro encostar em mim
E ao tentar olhar para trás
Você força minha cabeça para frente
“Continue olhando a lua, amor”

Ele suspira e geme
Não quero acreditar no que estou passando
“Continue, minha bebezinha”
Eu choro, desesperada
Sinto um jato quente no meu bumbum
E corro para o quarto
Com o esperma do diabo na saia

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Tomo banho como quem não toma há anos
Com intenção de me limpar do ocorrido
Mas ainda estou suja
Estou imunda
E estarei até minha morte
Porque você sujou minha alma, pai

Sua missão era me amar
Por que falhou tão miseravelmente?
Era pra você me proteger
Dos lixos que vou encontrar na vida
E não ser deles o pior e mais medonho

(…)
Já não consigo mais olhar para a lua
Mesmo que tão linda
Me faz lembrar daquele jato
Do gemido
Do membro podre dele tocando em mim
E só agora, depois de 6 anos
Minha mãe soube
Descobri que minha mãe foi estuprada
Violentada por ele
Quando era moradora de rua

“Me desculpa, filha
Ele tinha condições
Para cuidar de nós
Mas se eu soubesse
Que ele seria capaz disso
Permaneceria na rua”

Desculpa, mãe
Por ter nascido do que te machucou
Me desculpa por usar aquela saia
Me desculpa por existir
E ser tão apaixonada por família
Ser carente de afeto
Querer a presença de um pai
E não fazer nada para impedir seu pranto

Arruma as malas e vamos nos reinventar
Deixa o diabo viver sozinho
Porque mãe, vou te dar uma vida de rainha
As mágoas estão pesadas
Muito mais que as malas
Mas juntas, conseguiremos carregá-las
Pode ser num quarto barato
Numa pensão fedida
Ou até na rua mesmo
Mas vamos embora daqui
E voaremos
Em busca da alegria que nunca tivemos
Em busca da alegria que é nossa por direito
Em busca dos nossos sorrisos.

Leia outros textos de Juliane França em seu blog: http://meussentimentosereflexoes.blogspot.co

Do país dos “direitos humanos”

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