Quando a arte completa a vida
Em O Bruto (El Bruto), filme de Luis Buñuel de 1953, a morena Paloma é casada com o inescrupuloso Andrés Cabrera, um proprietário que intimida seus inquilinos. Andrés contrata Pedro (o Bruto), que trabalha num matadouro protegido pela imagem da Virgem de Guadalupe, para fazer o trabalho sujo. Enquanto isso, Paloma o seduz e depois se enfurece ao descobrir que ele se apaixonou pela filha de uma das vítimas, Meche, a doce filha de don Carmelo. Paloma mente para o marido, afirmando que Pedro a estuprou, um duelo se segue e Andrés é morto. Mas Pedro não será herói por muito tempo, Paloma (pomba, em espanhol) vem com a polícia e o prendem. Sozinha, saboreia a vitória enquanto uma galinha olha para ela. Charles Tesson evidencia aqui o padrão comercial do cinema mexicano operando na obra de Buñuel: A Virgem (Meche) e a prostituta (Paloma, aquela que está longe de se comparar) (1). Um padrão já encontrado em Subida ao Céu (Subida al Cielo, 1952), com a inocente esposinha Albina e Raquel, a personificação da tentação diabólica. Outro exemplo da fase mexicana de Buñuel é Nazarin (1958), onde Andara (a prostituta) e Beatriz (que ama platonicamente) formam um triângulo cujo vértice é o padre.
Buñuel conta uma história sobre os bastidores de O Bruto que seria suficientemente buñueliana para fazer parte do próprio filme. Pedro Amendáriz, que atuou no papel de Pedro, costumava dar uns tiros para o alto em pleno estúdio de gravação e recusava-se a usar camisas de mangas curtas. Ele achava que esse tipo de roupa era coisa de homossexual e se aterrorizava com a ideia de que o pudessem tomar por um. Numa cena do filme ele está fugindo de amigos de Carmelo quando encontra Meche, que o socorre sem saber quem ele é. Pedro está com uma faca enfiada nas costas e deve pedir que ela a retire. Amendáriz deve dizer: “Arranca-me esse negócio que eu tenho aí atrás” (2). Durante os ensaios, contou Buñuel, o ator gritava enraivecido que não diria a palavra “detrás”. Palavra que o cineasta suprimiu porque o ator acreditava ser fatal para sua reputação (3). É curioso notar como a insegurança em relação à própria masculinidade é tão intensa no mundo latino quanto o donjuanismo.
Outra coincidência buñueliana entre a arte e a vida, agora numa chave menos sexual e mais no registro da relação amorosa, aconteceu com o filme Ensaio de um Crime (Ensayo de un Crimen, 1955). Archibaldo queimará no forno uma boneca feita à imagem e semelhança de Lavinia. Pouco tempo depois das filmagens Miroslava Stern, a atriz que interpretou Lavinia, se suicidou por mágoa de amor e havia deixado instruções para ser cremada. Voltando à chave sexual, Buñuel contou que a atriz francesa Simone Signoret não estava com a menor vontade de atuar em A Morte no Jardim (La Mort en ce Jardin, 1956), seja lá qual for o motivo, sua personagem era uma prostituta numa pequena cidade mineira, está fazendo compras numa mercearia e pede um sabonete. Ao saber que soldados estariam chegando em breve, pede cinco sabonetes. No filme anterior, Assim é Aurora (Cela s’appelle l’aurore,1956), a atriz Lucia Bosé é Clara. Buñuel disse que recebia muitos telefonemas do noivo dela na época, ele queria saber quem era o galã que contracenaria com ela. Curiosamente, esse noivo era toureiro.
Tesson chama atenção para outro tipo de triângulo amoroso no último filme de Buñuel, Esse Obscuro Objeto do Desejo (Cet Obscur Objet du Désir, 1977). Ao invés de duas mulheres representando campos opostos, uma mesma personagem (Conchita) desdobrada em duas atrizes. Enquanto, em O Bruto, Paloma e Meche choram pelo mesmo homem, as duas Conchitas estão unidas pela falta de desejo por um. Aqui a rivalidade entre duas mulheres em busca do mesmo troféu se transfigura no desdobramento de uma mesma figura, mas agora para resistir contra um homem que gostaria de ser um troféu.
Conchita, a última mulher de Buñuel
Como bem lembrou Tesson, Conchita foi o último personagem feminino de Buñuel, ao mesmo tempo o mais enigmático e o mais claro. Seu nome é o diminutivo de concha, que por sua vez é diminutivo de Concepção – a mãe de Conchita se chama Anunciacion. A concha vive na água e simboliza a fecundidade, designando por sua forma o órgão sexual feminino. O comportamento de Conchita condensa a promessa de prazer sexual (Concepção e fecundidade) e cinto de castidade, da mesma forma que a Virgem Maria, outro milagre de uma fecundidade que se manteve casta. Na primeira vez que Faber encontra Conchita, ela está carregando um buquê de rosas vermelhas – Tesson ensina que na França diz-se de uma mulher infiel que ela está levando um buquê para seu marido.
Tesson também sugere que o vaso lembra o órgão genital feminino. Uma associação que poderia ser feita em relação a Ensaio de um Crime, quando Archibaldo oferece a uma mulher (alguém que ele crê ser casta e pura) o vaso que ele mesmo fez. Em Esse Obscuro Objeto do Desejo, durante a conversa em que Conchita afirma para Faber ser ainda virgem, um corte na imagem nos leva diretamente ao frontão de uma igreja onde se lê: Nossa Senhora da Anunciação (Notre Dame de l’Annonciation); e abaixo, “Sala Joana d’Arc”. Por essa porta sai Anunciacion, a mãe de Concepcion (Conchita) (4). O suposto fim da virgindade de Conchita será representado por um vaso quebrado.
Tristana, a Mulher Concha
Nossa Senhora já havia feito uma aparição mais problemática em Tristana (1970), onde a personagem de Catherine Deneuve se mostra nua no balcão e logo a seguir vemos a estátua da Virgem Maria numa igreja, toda coberta com seus mantos. Estátua que abre a seqüência do casamento de Tristana e don Lope, uma união não consumada onde ela estava de preto como se estivesse num enterro. Na cena do balcão, depois de sair do quarto dela sem conseguir nada, do jardim o adolescente surdo-mudo Saturno joga algumas pedras na janela dela. Já nua e coberta apenas por um roupão, ela se dirige ao balcão. Lá embaixo o rapaz olha, Tristana abre o roupão, deixando a mostra todo o seu corpo – o que incluiu mostrar-se sem a perna mecânica.
Tesson chama atenção de que quando ela chega ao balcão, Saturno faz um gesto para que ela levante a roupa. Ela abre o roupão e oferece sua nudez como quem abre uma concha. Tristana esboça um sorriso triunfante e vagamente dominador, enquanto a visão da mutilação aterradora faz o adolescente recuar até desaparecer nas folhagens. Tesson encontra uma metáfora aí: o garoto que se afunda no mato grosso de seu sexo. O encadeamento em oposição entre a nudez de Tristana e a estátua vestida da Virgem condensa uma figura obsessiva em Buñuel: a passagem de Eva à Maria, da nudez impudica (o prazer sexual e o pecado original) a uma restauração coberta (que ao mesmo tempo salva as aparências e preserva a castidade na fecundidade).
Susana e a Mãe e as Outras Mulheres
Em Simão do Deserto (Simón del Desierto, 1965), a “coisa” (encarnada pela atriz Silvia Pinal) procura obstinadamente distrair o impassível Simão, que empoleirado no alto de sua coluna no deserto lhe manda um “vade retro satan”. Aquela mulher, encarnação do demônio, depois de ter mostrado suas pernas e seios para Simão sai dali com o corpo arqueado de uma velha. Essa passagem inverte o milagre do corpo jovem da tia que, numa cena de O Fantasma da Liberdade (Le Fantôme de la Liberté, 1974), autoriza seu jovem sobrinho a descobri-lo retirando a coberta (5). Já em Susana (Susana, 1950), a protagonista encarna o amor louco, trazendo consigo o germe da subversão. Ela reedita o casal de A Idade do Ouro (l’Âge d’Or, 1930), ela é encarcerada e retirada do convívio social. Ela foge do reformatório (depois de rezar para o “Deus dos cárceres”), sendo acolhida por don Guadalupe e sua família. Susana seduz o filho, o capataz (chamado Jesus) e depois o pai. Estimulada pela criada, que vê Susana como a encarnação do diabo, dona Carmem supera seus freios cristãos e surra a jovem com um chicote (6).
Nos textos medievais, nos conta Tesson, Eva é descrita como sendo a porta do diabo. Ela é a porta da serpente e a faz entrar. Serpente que é a metáfora do pênis. Se Eva é a Mãe do pecado, Maria é a “outra Mãe”. Neste caso, o ventre maldito é santificado. Em Susana, dona Carmem representa os interesses de Maria (o modelo de família), e a Susana de Buñuel não é a Susana personagem bíblico que se encontra no Livro de Daniel – onde ela é uma mulher casta acusada injustamente de adultério. No final de Susana, tudo acaba bem. Mas se dependesse de Buñuel, o final seria outro: don Guadalupe retiraria dona Carmem e entregaria a fazenda a Susana. Otávio Paz sintetizou uma das características mais frequentes nos filmes do cineasta espanhol afirmando que, “o tema de Buñuel não é a culpa do homem, mas sim a de Deus” (7). Buñuel não gostou de Susana, mas se avaliamos o filme para além do clichê do melodrama talvez encontremos alguns elementos bastante recorrentes em Buñuel. Nas palavras de Augustín Sánchez Vidal:
“A originalidade de Susana reside em que a protagonista não só representa o amour fou, mas sim é a própria realidade… Libertada da prisão e… guiada já mais por Buñuel do que por Deus, se dirige a uma fazenda que é a replica exata do paraíso e do qual, consequentemente, todo mundo tem medo de ser despedido, inclusive os patrões. Recebem [Susana] como um anjo, naturalmente, mas ela leva o germe do desejo e se dedica a contagiá-lo” (8)
Wilson H. da Silva sugere inclusive que Susana antecipa algo de Teorema (direção Pier Paolo Pasolini, 1968). A presença de um ser estranho que desestabiliza um ambiente equilibrado, mas um equilíbrio baseado numa vida hipócrita. Tanto é que o happy end de Susana (ela é presa) se dá justamente na reconstituição desse padrão hipócrita (aqui o filme já se descola de Teorema). Evidentemente, Buñuel teve de se render aos padrões de produção mexicanos que determinavam a estrutura convencional do filme. Mas o filme é pontuado pelas convicções do cineasta. Linda Willians afirmou que, “até mesmo o mais convencional dos filmes mexicanos [de Buñuel] revela uma ocasional justaposição bizarra ou um desejo incongruente, que se introduz sobre a fina superfície das relações sociais” (9).
De fato, Silva afirma que podemos dizer que Susana carrega o germe de Tristana, Severine (A Bela da Tarde, Belle du Jour, 1966) e Viridiana. Mas Silva acredita que não seja tanto uma questão de gênero. Não é porque elas são mulheres que são assim. A questão mais importante seria o desejo despertado por Susana entre os moradores da fazenda. Um desejo que ameaça a ordem patriarcal e burguesa, expondo suas mesquinharias, hipocrisias, mentiras e covardias. Reafirmando a tese de Buñuel contra a moral burguesa, que para ele constitui uma imoralidade contra a qual se deve lutar. Uma moral baseada nos chamados “pilares da sociedade”, as instituições que Buñuel considera injustas: a religião, a pátria, a família e a cultura. Silva cita também um comentário de Ado Kyrou em 1966 sobre as personagens femininas em Buñuel:
“Um nome, Viridiana. Tudo começou, sem dúvida, dessas cinco sílabas, porque todo o filme está condensado nessa admirável conjunção de vírus e diana […]. O vírus instalou-se na mulher que poderia ter sido a caçadora; faz dela uma vítima. O vírus é Buñuel, e a mulher sublime e pronta a tudo dinamitar à sua passagem é aquela eterna vítima de múltiplas fisionomias, que, de filme para filme, de Susana a O Alucinado [Él, 1953], atraí o vírus por sua feminilidade; por sua força também, porque as vítimas são frequentemente mais fortes que seus carrascos” (10)
As Mulheres de Luis Buñuel foi publicado originalmente pela RUA (Revista Universitária do Audiovisual)/UFSCar, São Paulo, em 15 de abril de 2011. Foi incluído no catálogo da Mostra Luis Buñuel, o Fantasma da Liberdade, pela Fundação Clóvis Salgado, Minas Gerais, março/abril de 2012.
Notas:
1. TESSON, Charles. Luis Buñuel. Paris: Éditions de l’Étoile/Cahiers du Cinema, 1995. Pp. 148-9.
2. RUIZ, Adilson. Buñuel, um Cineasta no Exílio. In: CAÑIZAL, Eduardo Peñuela (org.). Um Jato na Contramão: Buñuel no México. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993. P. 210.
3. BUÑUEL, Luis. Meu Último Suspiro. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2009. Pp. 299, 300-1.
4. TESSON, Charles. Op. Cit., p. 150.
5. Idem, pp. 154-5.
6. RUIZ, Adilson. Op. Cit., p. 205.
7. SILVA, Wilson H. da. O Espelho de Susana. In: CAÑIZAL, Eduardo Peñuela (org.). Op. Cit., p. 51
8. Idem, p. 52.
9. Ibidem, p. 53.
10. Ibidem, p. 52n3.