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Martírio no claustro

Outro dia, vi alegres freirinhas vendendo pães caseiros pelo bairro e imaginei quem escolhe tornar-se freira hoje em dia. Algumas possibilidades: tímidas interioranas, adolescentes manipuladas por mães e avós religiosas ou moças pobres e/ou idealistas.

Mesmo as mais convictas noviças teriam suas certezas abaladas se lessem o clássico A Religiosa, do dramaturgo e romancista Denis Diderot, lançado em 1796, após sua morte. Estamos no século 21 e talvez as coisas tenham mudado um pouco nos conventos mas o martírio sofrido no claustro pela personagem principal, Suzanne Simonin, abala a fé da mais fervorosa das beatas.

O livro relata a história de Suzanne, filha bastarda de uma família aristocrática, e obrigada a se recolher ao convento. O seu calvário tem um pouco de tudo: abandono familiar, bullying por parte das outras freiras, perseguição pela madre superiora e assédio lésbico. O romance colocou a mão na ferida dos abusos praticados nos conventos franceses da época.

Denis Diderot detonou a reputação dos conventos franceses
Denis Diderot detonou a reputação dos conventos franceses

As duas Religiosas

Quarenta e sete anos depois da adaptação do livro ao cinema pelo diretor francês Jacques Rivette, em 1966, um dos artífices da Nouvelle Vague, o diretor, também francês, Guillaume Nicloux aceitou o desafio de realizar uma nova adaptação cinematográfica do romance.

Inevitável a comparação entre os dois filmes. Enquanto Rivette centra seu longa mais na crueldade da Igreja e na hipocrisia social da época que transformam Suzanne em uma verdadeira prisioneira, Nicloux filma as agruras de Suzanne de maneira mais palatável.

Talvez uma certa condescendência do filme de Nicloux com a Igreja venha do fato de sua confissão de que quase tornou-se padre. “Salvou-me o rock-n’-roll, em vez de padre, virei punk”, confessou o diretor ao crítico Luiz Carlos Merten, no jornal O Estado de São Paulo na última sexta (dia 6).

Na nova versão, Suzanne é vivida pela atriz Pauline Étienne. Sua expressão de moça desamparada cai como uma luva para o papel e nos desperta desmedida compaixão. Já o trabalho da magistral Anna Karina, que viveu Suzanne no filme de 66, são outros quinhentos: de inalcançável sofisticação psicológica.

O filme de Nicloux conta com um trunfo: a bela interpretação de Isabelle Huppert da madre superiora do segundo convento de Suzanne e que tenta iniciar a protagonista no caminho da homossexualidade. A atriz de 60 anos e extenso currículo no cinema francês e europeu dá vida a uma madre atormentada pelos dilemas de seus desejos lésbicos.

Todo o desamparo da Suzanne de Pauline Étienne

No filme de Rivette, assistimos de forma explícita a cumplicidade da Igreja na época com as absurdas regras sociais do status quo vigente. A Igreja corroborava com a opressão de uma aristocracia que teria sua cabeça cortada na Revolução Francesa, em 1789.

Truffaut costumava dizer que a Nouvelle Vague “só aconteceu por causa do empenho de Rivette”. Um dos diretores menos conhecidos do movimento cinematográfico francês, Rivette arranca uma atuação arrebatadora da atriz preferida de Godard, a dinamarquesa Anna Karina.

Simplesmente arrebatador o carisma de Anna Karina como Suzanne

Em seu lançamento na França, a igreja tentou barrar a exibição do filme, o que aguçou a curiosidade do público e garantiu seu relativo sucesso. Rivette foi tema de mostra em São Paulo no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), entre o final de junho e começo de julho.

O livro de Diderot é baseado na história de Margueritte Delamarre, cujo pai a confinou em um convento quando tinha apenas três anos. Mesmo tendo apelado à Justiça contra seus votos forçados, em 1752, ela perdeu o processo e permaneceu enclausurada até a morte.

Assista ao filme completo com legendas em espanhol:

Ambos os filmes estão disponíveis em DVD.

Trecho do romance de Diderot

situai um homem numa floresta, ele tornar-se-á feroz; em um claustro, onde a ideia da necessidade junta-se à da servidão, é pior ainda; de uma floresta se pode sair, mas não de um claustro; é-se livre na floresta, é-se escravo no claustro. É preciso talvez com mais vigor de alma para resistir à solidão do que à miséria; a miséria envilece, a clausura deprava. Valerá mais viver na abjeção do que na loucura? É o que não ousarei decidir; mas cumpre evitar a uma e a outra”

http://www.zonacurva.com.br/o-evangelho-segundo-pasolini/

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