por Elaine Tavares – no IELA
No sistema capitalista de produção a humanidade só tem sentido se estiver a serviço das coisas. Da mesma forma, os trabalhadores em geral só são considerados como produtores de coisas que, por sua vez, farão a riqueza daqueles que são os donos dos meios de produção. A vida da pessoa que produz coisas para os donos das empresas ou das terras não tem a menor significação. Ela só vale enquanto estiver em condições de produzir e gerar lucro. Se não estiver girando essa roda, a pessoa em si não importa. Essa é uma verdade inquestionável dentro do sistema capitalista. E é por isso que pessoas como os índios, por exemplo, não tem a menor importância para quem defende esse sistema. Para essas pessoas o índio é um inútil, não produz coisas, não garante lucro, logo, é passível de ser exterminado.
Essa foi a síntese da argumentação dos deputados que compõem a comissão especial da PEC 215 e que são favoráveis à mudança da Constituição. A PEC, se aprovada, permitirá que todas as decisões envolvendo demarcação de terras – no presente, no futuro e no passado – sejam tomadas, e revistas, pelos deputados. Ora, a maioria dos parlamentares na Câmara de Deputados defende os interesses dos empresários e fazendeiros. Nesse sentido, é mais do que óbvia a decisão que será tomada. Se não houver uma força gigantesca por parte da sociedade – e não apenas dos índios – a PEC fatalmente passará. O que está em questão é a posse da terra. E a terra, para os que defendem o sistema capitalista, é considerada um equivalente do capital. Ela está aí para gerar lucro, não para ser ocupada por índios que não produzem.
Importante diferenciar produção de produção capitalista. A terra, para os indígenas, está colocada numa totalidade que envolve a maneira de viver. Ela é espaço de moradia, de comunhão, de produção de alimentos, de coleta de alimentos, é espaço do sagrado, morada dos deuses. A terra não existe para gerar lucros. Ela existe para ser espaço de vida. O que se planta na terra é para usufruto das famílias, tem reprodução compartilhada.
Já para a produção capitalista a terra é um bem que se compra e vende. Ela tem um valor intrínseco como coisa produtora de lucro, seja para exploração mineral, para produção de monocultura de exportação ou apenas para ficar descansando, engordando o valor para futuras vendas. Não há qualquer relação com a terra, a não ser a de coisa que pode gerar lucro em alguma medida.
Por isso os deputados querem fazer passar a PEC 215. Com essa mudança na Constituição, eles poderão – representando os interesses dos latifundiários – reverter demarcações já feitas e impedir que novas demarcações sejam efetuadas, expulsando os indígenas de seus territórios históricos ou não permitindo que eles se mantenham nas terras originárias. Para esses senhores e senhoras que representam os poderosos, no Brasil não existem mais índios, eles são “índios genéricos”, como disse um representante de Santa Catarina, Valdir Colatto (PMDB). E o que significa essa expressão? O que seria um “índio genérico”? Alguém que não é mais índio, ou alguém que só aparenta ser? Para o deputado, índio genérico seria aquele que fica usando celular e o verdadeiro é o que está escondido na mata. Ou seja: para ele, bem como para seus parceiros, qualquer um desses “índios” é um problema. Tanto o que está na mata, atrapalhando o progresso, como o que usa celular, porque está se apropriando de um equipamento de “branco” para fazer a luta.
Alguém poderia dizer que Colatto é um ignorante. Mas, ele não é. Na verdade ele está trabalhando muito bem no campo do simbólico, levando a sociedade a crer que se um índio usa roupas, não faz sons guturais e ainda usa celular, só pode não ser um índio. E se não é um índio, então suas reivindicações não devem ser levadas em conta. Pura lógica. No final, o que importa mesmo é semear a dúvida, que, depois, será divulgada à exaustão pelos meios de comunicação de massa. E o homem comum, sentado diante da TV acusará o índio e defenderá a ideia de que os deputados, gente de bem, é que estão certos. O fim de tudo isso é um só: desqualificar o índio para apoderar-se de suas terras.
O projeto capitalista não tem espaço para o índio. Como já foi dito, ele não produz coisas. Não gera lucro. Mas, como eles existem então a única saída é exterminá-los. Por isso que os conflitos envolvendo a luta pela terra e os indígenas estão cada vez mais frequentes, envolvendo até forças de repressão nacionais, como se viu essa semana no Mato Grosso do Sul. Todos os instrumentos do estado são colocados à disposição dos que se dizem “proprietários” das terras para despejo dos indígenas que se arvoram a reivindicar um espaço que é seu.
O estado existe para defender os interesses dos empresários e fazendeiros. O legislativo está tomado por aqueles que defendem os mesmos interesses. Os meios de comunicação estão a serviço dos mesmos empresários e fazendeiros. Tudo está articulado. Não é sem razão que o senso comum vai assumindo a ideia de que os índios (os verdadeiros) são preguiçosos e os “genéricos” são falsos. Por isso as pessoas “de bem” conseguem assistir na televisão o massacre de crianças, jovens e velhos nas estradas, nos acampamentos, nas aldeias, como uma coisa natural. “É preciso limpar o Brasil da escória”, dizem os ricos, e os empobrecidos que deveriam cerrar fileiras de solidariedade, assentem, sem perceber que a escória mesmo é outra.
Hoje segue o debate na comissão especial da PEC 215 e pela conformação da mesma é bem provável que seja aprovada. A maioria parlamentar é conservadora e defensora dos interesses da minoria que domina os meios de produção no país. Não há dúvidas quanto ao resultado. E, indo para discussão e votação no plenário também é certo de que passe. A correlação de forças na casa legislativa é brutal, sempre contra os de baixo. A representação majoritária é a da classe dominante. Logo, para os trabalhadores, os pobres, os índios, os negros, os desgraçados da história, não há esperanças ali naquele lugar.
A única possibilidade para os que defendem a vida da maioria é a luta. E, essa, é sempre difícil, dura, desigual. No mais das vezes são corporativas, defendem interesses particularistas, não se misturam às grandes questões. Assim, resta aos grupos irem resistindo, usando brechas legais, ocupando espaços.
O certo mesmo era que todos os trabalhadores e toda a gente empobrecida se juntassem na defesa das causas particulares para que dessa defesa nascesse a força para mudar o todo. Hoje são os índios que estão ameaçados, amanhã seremos nós, e cada um em particular. Quando a Câmara define que a universidade pública pode cobrar pela pós-graduação, ela está colocando à margem milhares de nós. Quando decide que mulher estuprada não pode abortar, coloca à margem outras milhares de pessoas. Quando insufla o ódio religioso, a mesma coisa e assim por diante. A lógica do poder é dividir aqueles que podem ser os potenciais inimigos. Eles que lutem entre si. Enquanto isso eles avançam.
Na chamada “casa do povo” segue a discussão da nossa vida, e digo nossa porque o destino dos povos indígenas nos afetará a todos. E, enquanto isso, muitos ainda torcem o nariz para a política, permitindo que suas vidas sejam dirigidas pelos empresários e fazendeiros, acreditando serem defendidos por eles. Não são. Suas vidas só têm valor enquanto produzirem lucro. Se adoecerem, se ficarem velhos, se perderem o emprego, serão também massacrados e dizimados como se fossem coisas inúteis. Não há escapatória. Ou se entende isso e se luta em comunhão. Ou caminhamos todos para o abismo.
Publicado originalmente no Instituto de Estudos Latino-americanos.