Desliza por entre as corcovas da rua; desempregado, em desalento, fedendo muito e andrajoso: Lúcio, cuja única condição de quase toda vida é ser cadeirante. Não é possível lhe decifrar pelo rosto a idade, ele não possuí planos de saúde para o futuro próximo, nunca fez exercícios matinais, dietas ou hatha yoga para tornar saudável o corpo. Sem celular e sem relógio. Nunca pôde ter assinada a carteira de trabalho, inexistem em seu nome cartões de débito/crédito para fazer empréstimos ou comprar um liquidificador novinho, multiuso, em três vezes sem juros, nunca foi à praia nem colocou fones nos ouvidos para curtir um som. Não há empresa que o admita. Jamais será workaholic ou funcionário do mês. Não há casa própria e nem um carro seminovo em transpiradas prestações a sua espera, Lúcio já tem rodas, rodas assustadas e velhas, rodas que rilham em calçadas descuidadas.
Pouco consome e, por isso, é um ser de cidadania capenga. Lúcio, um pária das vidas passadas e vindouras.
Seus problemas renais & seus resquícios de derrame cerebral ou, talvez, paralisia infantil? progridem conforme avançam os nossos instantes, mas nada disso fará Lúcio constituir família, ter ofício remunerado ou pegar a cesta básica todo dia 28. Lúcio, quem o ampara, quem o ancora? Nunca nele haverá beleza que agrade ou dor que descontinue. Lúcio. Lúcio é crente? Sim, não, não sei, talvez, não sabemos. Será que nesses tempos ele já recebeu atenção dos médicos? Será que ele vai periodicamente aos consultórios da nossa cidade? Sei que ele nunca checa a caixa de e-mails, pois não envia e nem recebe e-mails. Ele nunca terá e-mails. Lúcio fede a mijo e bosta misturados a um ranço de leite azedo e indiferença social, disso até quem tem bom coração desgosta, enoja e lhe vira o rosto. Não carece sabermos se Lúcio acredita em partidos políticos, pois ele, assim como tantas outras gentes, vive à parte. Não vota, logo não existe. Não são relevantes para Lúcio os nossos manuais e cartilhas da-direita-contra-a-esquerda ou da-esquerda-contra-a-direita; talvez não cheguem aos ouvidos dele as notícias dos avanços nas pesquisas sobre células tronco; e a ele não afeta em nada a última encíclica papal que, das janelas arejadas do Vaticano, clama por paz lá no Oriente Médio.
Lúcio não tem sequer esparadrapos e pomadas para os furúnculos que infestam suas pernas mortas.
Arqueia, bambeia e quase-quase que cai na guia rebaixada. Lúcio de mãos indigentes e rosto talhado, cada ruga tem o dobro de sua velhice temporã. Vida, desleixos e tombos, já beijou o meio-fio três vezes na última semana, mas desconhece o que é receber afagos, um único afago que seja. Lúcio crente em deus em cada dez por cento de sua pequena aposentadoria de invalidez mirrada almeja no culto a cura, a unção, o milagre sempre adiado. Mas, em seu alheamento, quer na verdade que a morte se apresse, faça logo seu serviço e o presenteie com o fim. Lúcio compra remédios renais a cada mês sim e dois não: sua rotina está entre a farmácia da esquina, as panelas de macarrão com sardinha e bolachas secas para sobremesa (e é só, é só o que há, quando há, pra café, almoço e janta).
Quando Lúcio fala, se há quem ouça, arrasta a língua e nos próprios lábios esbarra, não há quem bem o entenda ou bem o escute. Às vezes é possível decifrar algo como: “tenho fome”, “me ajuda!”, “preciso água” ou “compra remédio pra mim”.
Lúcio cai.
Não fosse a cadeira retorta e os remédios renais, não haveria quem não dissesse tratar-se apenas de mais um pinguço. Lúcio, debruçado num canto esquecido de tudo, fede muito e agora também sangra. Espantalho urbano aquém das esmolas que não salvam. No torpor do fim de tarde há quem olhe, há quem lamente, mas todos passam. Um catador de recicláveis, que vem vindo inspecionando lixo a lixo à caça de alumínio, diminui os passos, estaciona o carrinho cheio de papelão úmido e, então, vê, ajoelha e ajuda o Lúcio pinchado na sarjeta, adiante está a cadeira apartada.
No quartinho alugado da pensão-cortiço há Lúcio de olhos marrons desbotados, baços. Quase não tem mais o patrimônio dos últimos dentes. Muitas vezes o abandona aquela típica fé, a fé dos empobrecidos que sempre esperam. Lúcio fez hemodiálise por seis anos, mas agora já não adianta mais.
Ontem hoje amanhã sempre nunca olhamos pelas frestas da rotina. Por essas frestas se enxerga a ambulância do SAMU que vem vindo e estaciona em frente ao portão de ferro fosco. Entram, num cômodo três por dois, os socorristas treinados eles estão no local indicado pela denúncia anônima de abandono e averiguam se naquele quase-feto sobre a cama sem lençóis habita ainda algo da vida. Desse mesmo ontem hoje amanhã sempre nunca eu desvio meus olhares. Nunca ajudei Lúcio. Levanto-me, espaireço-me em mais um cigarro e sei que o mundo segue oprimido, independentemente do que diz esse meu péssimo texto.
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