Zona Curva

A longa tradição de golpes ‘brancos’ no Brasil

Engana-se quem pensa que estamos diante de um fenômeno ‘novo’ em nossa história: o que não falta em nossa história são golpes como o de agora.

por Flávio Aguiar – de Berlim, publicado na Agência Carta Maior

O golpe em curso no Brasil, e que nesta quarta-feira vai atingir um novo momento de clímax com a votação do afastamento da presidenta Dilma Rousseff, consagrou aqui na Alemanha o nome “kalter Putsch” – “golpe frio” – como sua certidão de batismo. Criada, ao que parece, pela revista Der Spiegel, a expressão se espalhou por toda a imprensa alemã.

Na nossa tradição o nome consagrado para este tipo de golpe que está sendo dado é “golpe branco”, por oposição a “golpe militar”. Tradição? Sim, porque se engana quem pensa que estamos diante de um fenômeno “novo” em nossa história. Nela abundam “golpes brancos”. Bem, os há de todas as tonalidades, do cinzento ao marrom, por exemplo. “Marrom”? É, “marrom”, porque quase todos os golpes no Brasil, de 1954 para cá, contaram com a participação ativa e conspirativa de nossa “imprensa, hoje “mídia marrom”, impropriamente chamada de “grande imprensa”, como nas campanhas sujas contra Getúlio em 1954 e contra Goulart em 63/64. E agora, mais uma vez, neste golpe de 2016.

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Vamos a um rápido levantamento dos golpes brancos em nossa trajetória histórica.

Constituição de 1824

A primeira Constituição do Império foi outorgada ao país por D. Pedro I, através de um golpe branco. Este foi precedido por um golpe militar. Em 12 de novembro de 1823, cansado pelas querelas entre as facções irreconciliáveis da Assembleia Constituinte que ele mesmo nomeara, D. Pedro I mandou a tropa cercá-la, prendeu alguns dos deputados e encerrou a questão. No dia seguinte nomeou uma comissão de “notáveis”, de sua escolha, e pediu/ordenou que ela redigisse a Constituição, jurada e outorgada por ele em 25 de março de 1824.

Golpe da Maioridade.

No começo da década de 1840 o Brasil achava-se tomado por rebeliões regionais de maior ou menor porte, como a Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul, que já durava cinco anos e ainda duraria mais cinco. Os sucessivos governos do Período Regencial não conseguiam debelá-las, engolfados também pelas dissensões entre as facções políticas da Corte. Por instigação do futuro Partido Liberal, sobretudo, o Senado proclamou a maioridade de D. Pedro II, então com 14 anos e sete meses de idade. O Segundo Império duraria até 1889.

Deposição do Gabinete Liberal em 1868

Em 1868 a Guerra do Paraguai se arrastava. Caxias já era o comandante geral não só das tropas brasileiras, mas das aliadas. Entretanto, atritou-se crescentemente com os membros do governo, que pertenciam à chamada Liga Progressista. Pressionou então o Imperador, exigindo que, para continuar no comando, o gabinete fosse substituído. De fato, em 16 de julho de 1868 o Imperador dissolveu o gabinete e chamou os Conservadores ao poder, que eram próximos de Caxias. Eles ficariam no Gabinete até 1878.

A República.

Em 15 de novembro de 1889 a República foi proclamada num golpe de estado que deveria ser clássico, com a tropa formada e a deposição do governo imperial. O movimento era algo confuso, porque seu líder improvisado, o Marechal Deodoro, era monarquista e amigo pessoal do Imperador. De início, Deodoro cogitava apenas haver uma troca de ministério. Entretanto, pressionado pelos republicanos civis, que temiam a prisão de seu líder, Benjamin Constant, Deodoro decidiu levar a cabo a empreitada, e proclamou o fim do Império. Surpreendentemente, o Imperador aceitou pacificamente a situação. Pode-se dizer que ele, na prática, se auto-depôs, partindo com a família para a Europa e recusando soberanamente a pensão vitalícia que o novo governo lhe ofereceu. Transformou, assim, o golpe clássico numa espécie de golpe grisalho. A República proclamada não seria bem uma república, tornando-se, primeiro, um condomínio de militares e depois um condomínio das oligarquias, sobretudo a paulista e a mineira.

O governo de Floriano Peixoto.

Em 1891 o Marechal Deodoro mandou a tropa cercar o Congresso Nacional e fechou-o. Mas dias depois, já agastado pela constante crise política, renunciou. Dizia a Constituição que neste caso, antes do governo completar dois anos (os primeiros meses do governo de Deodoro tinham sido “provisórios”, e ele assumira de fato o governo “definitivo” em fevereiro de 1891), deveria ser chamada nova eleição. Mas o vice, Floriano Peixoto, entendeu que isto só se aplicava a governos eleitos diretamente. Como ele fora eleito indiretamente, decidiu continuar no cargo… E assim aconteceu.

A República Velha

Pode-se considerar o conjunto das eleições realizadas na República Velha como uma sucessão de golpes brancos, tamanha era a incidência de fraudes de todos os lados e da pressão exercida pelos governantes de plantão para se manterem nos respectivos cargos ou fazerem seus sucessores.

A eleição e posse de Juscelino

Depois da morte dramática e traumática de Vargas, em 1954, ocorreram novas eleições presidenciais em 1955. O mineiro Juscelino Kubitschek venceu, mas a UDN, Carlos Lacerda à frente, deflagrou nova campanha virulenta contra sua posse. Com apoio de alguns militares, a campanha atingiu seu ápice em novembro de 1955. O vice-presidente Café Filho renunciou, numa manobra para que o novo presidente empossado, Carlos Luz, que presidia a Câmara dos Deputados, chamasse novas eleições. Era o começo de mais um golpe branco. Entretanto o ministro da Guerra (hoje se chamaria ministro do Exército), Marechal Lott, deflagrou um contra-golpe, depondo Carlos Luz, prendendo Café Filho em sua casa, e empossando Nereu Ramos, 1º vice-presidente do Senado como presidente, que garantiu a posse de Juscelino.

O parlamentarismo

Depois da renúncia de Jânio Quadros em 1961, os três ministros militares tentaram impedir a posse do vice, João Goulart. Com o movimento de resistência (a Legalidade) liderado pelo governador Brizola, o Congresso Brasileiro achou uma saída conciliatória. Num autêntico golpe branco, votou a adoção do sistema parlamentarista, cerceando os poderes do presidente. O sistema cairia com o plebiscito de 1963.

As eleições na Nova República.

De fato, pode-se ler a derrota da emenda das eleições diretas ao final da Ditadura de 64 como um golpe branco. A partir daí houve uma série de trucagens, sobretudo através da mídia marrom e golpista, para dirigir o resultado de algumas eleições, sempre com a valiosa colaboração da Rede Globo e afins. Foi assim quando da eleição de Collor, e também, aí sem sucesso, quando da reeleição de Lula em 2006 e também da reeleição de Dilma em 2014, pelo menos.

2016

Como se vê, estamos de retorno a uma velha tradição incrustada no conservadorismo à brasileira, que não suporta políticas nem soberania populares por muito tempo. Desta vez, há uma dificuldade no caminho dos golpistas. De antemão, graças ao concurso das redes, eles estão perdendo desde já a narrativa do golpe, pois o golpe está sendo chamado pelo seu nome: golpe. Isto significa que sua consumação vai exigir, pelo menos, a tentativa de silenciar esta certidão de nascimento que está sendo democraticamente outorgada desde já ao golpe e aos golpistas. Ou seja, vem aí alguma forma, ou algumas formas de repressão sobre a liberdade de expressão nas redes e fora delas. Qual será o seu sucesso ou insucesso, veremos.

Publicado originalmente na Agência Carta Maior.

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