A previsível avalanche de notícias falsas e o fenômeno das “narrativas” marcam o início de uma campanha eleitoral que deve obrigar o jornalismo a uma difícil escolha e até influenciar o futuro da profissão. Trata-se da opção entre desconstruir a agenda eleitoral para que o público descubra o que não está sendo dito e mostrado; ou afogar o eleitorado num mar de notícias, impossibilitando as pessoas de identificar o que é falso, irrelevante ou fora de contexto.
São duas questões complexas que vão exigir abordagens diferentes dos profissionais e não profissionais do jornalismo (1). O primeiro desafio é o volume de material a ser analisado por repórteres, editores e comentaristas. É inevitável que a quantidade de fake news espalhadas pelos diferentes candidatos e partidos supere a capacidade das organizações verificadoras existentes de checar todo o material veiculado tanto pela imprensa (2) como pelas redes sociais.
O segundo desafio está ligado ao crescente uso das chamadas “narrativas”, formatos textuais ou visuais através dos quais os candidatos e políticos manipulam dados, fatos e eventos de forma a tentar dar credibilidade a suas propostas e posicionamentos eleitorais. Nas narrativas, predominam o uso de meias verdades e de conteúdos fora de contexto.
As vítimas do lixo fake
A impossibilidade material de checar a veracidade de todas as notícias publicadas durante a campanha eleitoral abre a possibilidade para muito lixo informativo chegar, sem verificação, até o público.
As fake news são a ferramenta mais usada por ativistas e políticos de extrema direita, aqui e no resto do mundo, para confundir a opinião pública e ampliar a desconfiança das pessoas em relação à imprensa. Os grandes conglomerados midiáticos entraram na mira dos ultraconservadores por conta dos vínculos entre a grande imprensa e o establishment liberal-democrático, dominante na maior parte dos países ocidentais. Trata-se de um confronto basicamente entre duas visões de mundo, mas as grandes vítimas são a informação e as pessoas que precisam dela para sobreviver.
Tudo isto ocorre num contexto em que, segundo o IVC (Instituto Verificador de Circulação), o total de assinantes dos 10 maiores jornais brasileiros caiu 57% nos últimos cinco anos (3). Ainda segundo o IVC, nenhum dos dez jornais mostrou uma tiragem média diária superior a 80 mil exemplares, o que assinala um brutal contraste com os saudáveis índices de 300 mil exemplares impressos, de publicações como a Folha de São Paulo e O Globo, há menos de 10 anos.
Os dados mostram uma irreversível erosão da confiança do público no outrora influente “quarto poder”, o que aumenta a responsabilidade do jornalismo, como função social, na geração de fluxos noticiosos que preencham o vácuo que está sendo criado pela crise na grande imprensa e pela caótica agenda das redes sociais.
A narrativa das urnas
A realidade construída pelos candidatos para justificar seus projetos, ações e ideias é bem mais difícil de ser desmontada porque exigirá de repórteres, editores e comentaristas uma engenharia reversa dos dados mencionados na “narrativa”. Ou seja, identificar a confiabilidade e a forma como o material foi organizado pelo “narrador”. A análise vai exigir também que o profissional investigue os porquês da narrativa, seus objetivos e métodos, para que o eleitor possa perceber como estão tentando influenciar o seu voto.
Nestas circunstâncias, o jornalismo provavelmente terá que recorrer a outras ferramentas além das incluídas nos manuais de redação. Terá, por exemplo, que recorrer aos instrumentos de investigação social desenvolvidos pela sociologia e a antropologia, duas disciplinas que na conjuntura atual podem ser extremamente úteis para o exercício da função social do jornalismo.
Um caso exemplar de “narrativa” política é o uso da expressão “liberdade de expressão” para justificar posições de extremistas de direita contrárias à ciência e às normas institucionais do país. A liberdade de expressão é um conceito complexo, mas foi simplificado e ressignificado para embasar campanhas contra a vacinação, defesa do terraplanismo ou exclusão de homossexuais e lésbicas. Outro exemplo é a “narrativa” da desconfiança nas urnas eletrônicas, um discurso baseado em dados falsos ou inexistentes para justificar um eventual pedido de anulação das apurações.
A combinação dos efeitos previsíveis das fake news e da desinformação gerada pelas “narrativas” sugere a hipótese de que talvez os profissionais do jornalismo devam se preocupar mais com os prováveis efeitos da saturação noticiosa durante a campanha do que com a frenética concorrência entre veículos para saber quem publica as manchetes mais impactantes.
O jornalismo lento no tsunami eleitoral
Uma alternativa possível para evitar os riscos de um tsunami informativo na campanha eleitoral deste ano é o jornalismo tentar frear a intensidade do fluxo de informação, priorizando o foco na qualidade e confiabilidade das notícias em vez de contribuir para que o acúmulo de material eleitoral aumente a desorientação do público e, consequentemente, amplie a desconfiança das pessoas nos produtores de informações.
É uma alternativa que contraria a rotina e as regras tradicionais da imprensa brasileira, tradicionalmente empenhada em publicar o máximo possível de notícias. Mas a avalanche informativa acabou superando a capacidade das pessoas de processar as informações recebidas e transformá-las em conhecimento.
Estamos vivendo novos tempos e, consequentemente, uma nova realidade onde os parâmetros são diferentes. Quando a informação era escassa por conta de limitações tecnológicas, era natural a preocupação em oferecer o máximo possível de notícias. Hoje, ocorre o contrário. A superoferta informativa gerada pela internet dificulta a compreensão do significado, importância e confiabilidade de notícias. E se o jornalismo tem sua razão de ser no apoio à tomada de decisões pelo público, a profissão precisa se adaptar a esta nova circunstância.
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(1) Por não profissionais, entendemos pessoas sem formação técnica ou acadêmica em jornalismo, mas que produzem e publicam notícias em blogs, páginas web e redes sociais. É o caso dos influenciadores e blogueiros independentes que, junto dos profissionais, passaram a ser classificados como informadores por alguns especialistas em comunicação pública.
(2) Consideramos que jornalismo e imprensa não são sinônimos. O jornalismo é a função de produzir notícias. Imprensa é o conjunto de empresas, com e sem fins lucrativos, que vendem espaços publicitários usando o interesse das pessoas por notícias. O jornalismo tem uma função social, que pode ou não ser remunerada, enquanto as empresas são corporações voltadas para a produção de lucros e sua repartição entre acionistas ou sócios.
(3) Detalhes em https://www.poder360.com.br/midia/jornais-em-2021-impresso-cai-13-digital-sobe-6/
A imprensa ainda não sabe lidar com a mentira em campanhas eleitorais
O jornalismo atual usa rótulos velhos para uma nova realidade