Zona Curva

Hoje é dia nacional do Saci Pererê

por Elaine Tavares

Até os anos 60 do século passado a vida da gente era completamente imbricada com a natureza. As grandes cidades ficavam muito distantes e as crianças vivenciavam toda a beleza de conhecer e compartilhar as figuras míticas, moradoras das florestas e dos cantos escuros dos lugares onde viviam. Desde pequenos, os meninos e meninas aprendiam que no meio da noite vagava um negrinho, pastoreando uma boiada, e que se alguma coisa se perdesse dentro de casa era só acender uma vela, e o negrinho ajudava a encontrar. O negrinho do pastoreio era visto nas noites de chuva, quando os relâmpagos riscavam o céu, imponente, no seu baio, cavalgando no rumo das estrelas.

Nas tarde de inverno, quando os redemoinhos varriam as ruas, a gurizada saia como foguete, com suas garrafas de bocas abertas, buscando aprisionar os Sacis Pererês. Porque afinal, desde sempre aprendiam que o negrinho de uma perna só costumava estar sempre no meio do redemoinho e só aí, quando estava distraído, girando no vento, é que se podia pegá-lo. De resto era sempre um tal de fazer estripulias, batendo janelas, quebrando as louças, levantando as saias das moças. O Saci é guri frajola, serelepe, cheio de alegria e de liberdade.

E se vinha a noite fechada, as crianças entravam em casa, porque sabiam que lá fora, na mata, haveria de andar o boitatá, a cobra de fogo que come os olhos dos bichos, ou ainda o lobisomem, buscando sangue fresco, e o curupira, arrastando os pés virados, procurando pela mula-sem-cabeça. Esse era um universo conhecido e reproduzido nas escolas, na família, nas rodas de conversa ao pé do fogo.

Já na ilha de Florianópolis, além de todos esses animais míticos também voejavam as bruxas, fazendo rodar as saias, empurrando as canoas para o alto mar, encantando os pescadores, fazendo sortilégios. Era bater o vento sul e as famílias já ficavam de orelha em pé.

Criança fantasiada de Saci Pererê

Mas, aí veio a urbanização, o crescimento das grandes cidades, o capitalismo apertou seus laços, infundiu a ideia do consumo. E, além da dominação econômica que já se apresentava, com o Brasil subordinado a bacos internacionais e governos de fora, outra dominação foi tomando conta da vida das gentes: a cultural. Já não bastava mais importar o jeito de produzir, a maneira de fazer as coisas, mas era necessário também copiar a cultura, o modo de ser no mundo daqueles que economicamente já dominavam a vida por aqui. Foi assim que se introduziu a moda, com a calça jeans, a minissaia, ou a música, com a introdução da guitarra elétrica e o rock, abafando de vez a marchinha, o xaxado, o baião e a vaneira. No cinema, dava-se adeus aos musicais inocentes e aos filmes do caipira Mazzaropi, recheados da vida nacional. Era chegada a hora de Roliúde e seus enlatados repletos de ideologia, colonizando as mentes, apresentando mentiras. Os faroestes estadunidenses endeusavam os cowboys e demonizavam os índios. Os filmes de ação apresentavam os soldados estadunidenses como heróis, salvando o mundo dos horrores das guerras, dos comunistas, e os dramas consolidavam a certeza de que bom mesmo era viver em apartamentos com carpete, fumar Malboro e encontrar o homem dos sonhos, que seria branco, alto e de olhos claros.

A partir daí foram-se ocupando os territórios mentais. As cidades cresceram, se modernizaram, e as gentes se faziam cada vez mais parecidas com aqueles que, de certa forma, já dominavam no terreno da economia e da política. Bom mesmo era cantar em inglês e não foram poucos os jovens cantores brasileiros que iniciaram suas carreiras cantando na língua estrangeira. Um bom exemplo foi Morris Albert, que fez sucesso no mundo todo com a música “Feelings”. Cantar em português era coisa de brega. Nas festinhas, a juventude enrolava um inglês que sequer se entendia. Papagaios.

O conceito de colonização diz que essa situação se faz real quando se conquista um território e se estabelecem novos moradores de acordo com o desejo dos que dominam. Pois foi exatamente isso que aconteceu com a gente. Nas cabeças das crianças, desde a mais tenra idade, foram sendo plantados novos conceitos, totalmente alienígenas. E esse tipo de controle chegou também no campo dos mitos. De repente, já ninguém mais falava em Saci, Curupira, Boitatá, Mula-sem-cabeça. Pela via do cinema cresceu a figura do vampiro e das festas estadunidenses. Uma delas é o Dia das Bruxas.

Festejando com o saci

Até uns 20 anos atrás o tal do “Raloim” era celebrado apenas nas escolas de inglês, o que até tinha certo sentido, uma vez que quando se aprende uma língua há que se aprender algo da cultura do povo. Mas, depois, de mansinho, a festa foi se imiscuindo na vida cotidiana dos jardins de infância das escolas públicas e particulares, espaço de terra virgem, onde a colonização mental tem uma força tremenda. Sem que as famílias percebessem, os elementos mais enraizados da cultura estadunidense começaram a fazer morada na vida da criançada brasileira. Abóboras, a lenda do Jack, enfim, todos os elementos da belíssima lenda de origem celta que foi trazida aos Estados Unidos pelos colonos ingleses. Coloniza-se a cultura e movimenta-se a máquina do capital.

Ao contrário do significado cultural e místico que o Raloim tem nos Estados Unidos, aqui, ao ser transferido de forma artificial, o tal “dia das bruxas” nada mais é do que uma data a mais para vender coisas, que aparecem em profusão nas lojas: abóboras, máscaras, fantasias. Desafortunadamente, essa colonização mental não acontece unicamente no Brasil, ela toma conta também de quase todos os países latino-americanos, onde se pode ver a indefectível abóbora nos 31 de outubro de cada ano.

No Brasil, um grupo de ativistas da cultura do interior de São Paulo começou desde há anos um importante trabalho de conscientização sobre a história da cultura nacional. Grupos como a Sociedade dos Observadores do Saci, a Sosaci, tem dado contribuição importante nesse processo, produzindo vídeos e outros materiais educativos visando recuperar os antigos mitos e lendas da cultura indígena e negra. Levando esse debate por todo o país, os militantes da Sosaci lutaram muito para que fosse instituído o dia 31 de outubro como o Dia do Saci, fazendo com que nosso moleque, de raiz indígena e negra, vença de uma vez por todas a dominação cultural do “raloim”, como bem atesta o manifesto do grupo. “Nós, brasileiros, temos nossos próprios mitos, que não ficam nada a dever a esses importados, comerciais, que são usados para anestesiar a autoestima do nosso povo. Respeitamos os mitos dos outros, mas não queremos que eles sejam usados pela indústria cultural como predadores dos nossos. E, cada vez mais, muitos brasileiros começam a compreender isso.

Uma prova são eventos como “O Grito do Saci”, realizado em São Luiz do Paraitinga, Estado de São Paulo, que atrai muita gente e cria uma catarse geral, uma lavação de alma. Outra prova é a onda de adesões que a Sosaci (Sociedade dos Observadores de Saci) recebe de vários pontos do país. O Saci, a Iara, o Boitatá, o Curupira, o Mapinguari , as bruxas da ilha e muitos outros brasileiros legítimos estão aí para serem festejados, sem espírito comercial, como nossos legítimos representantes no mundo do imaginário popular e infantil”. E assim é.

A discussão que foi criada em torno da celebração do Dia do Saci em nada tem a ver com a xenofobia ou o desrespeito a outros povos. Momentos como o Dia dos Mortos no México, o Inti Raimi na América Andina e o Halloween nos Estados Unidos representam a essência cultural de cada um dos povos que os reverenciam. Assim, a celebração dos nossos mitos autóctones é justamente a retomada do nosso território cultural que há tanto tempo vem sendo invadido e colonizado. Respeitar e dialogar com as demais culturas é rico e saudável, mas o preço disso não pode ser a destruição das nossas memórias ancestrais.

O campo da cultura é sempre um espaço muito mal cuidado pelos movimentos sociais e sindicatos de luta. Faz-se muita política, discute-se o capitalismo, mas muito pouco se discute o pilar de todas as mudanças que é o imaginário popular, a cultura. Desde aí se pode avançar com muito mais eficácia no processo de transformação da sociedade. Se desde bem pequenas as crianças tomarem contato com a beleza que vive no seu próprio espaço de vivência, muito mais fácil será trabalhar conceitos como soberania, liberdade, pensamento crítico, transformação.

A proposta do Dia Nacional do Saci, já definida como 31 de outubro, não é pueril, muito menos folclórica. É uma resposta inteligente e criativa a um longo processo de colonização mental que impera no nosso país desde a invasão europeia. Destruíram muitas culturas originárias, impuseram determinadas crenças e hoje, buscam homogeneizar a cultura. Mas, por todos os cantos do Brasil se levantam os amantes do Saci, do Curupira, do Boitatá, de Iara, Mãe d´água, Boto cor-de-rosa. Todos juntos se encontram nesse dia 31 para uma grande festa com carne seca, mandioca e viola. Porque nossa cultura autóctone tem beleza demais para se render aos interesses do capital.

Mas, para isso, é preciso que cada brasileiro faça sua parte. Pais e mães precisam retomar as velhas histórias, escolas devem ensinar os antigos mitos e toda a gente deve celebrar esse dia 31 de outubro como o dia do Saci e de todos os seus amigos.
Em Florianópolis o grupo da Revista Pobres e Nojentas celebra desde o ano de 2003, no 31 de outubro, o Dia do Saci e seus amigos. Na rua, com o Saci, se dialoga com a população, apresenta-se a história dos mitos locais, incentiva-se o festejo da cultura nacional. A mobilização já rendeu até a criação de uma lei municipal que estabelece esse dia como um dia de celebrar o gurizinho de uma perna só, retrato amalgamado da nossa cultura, juntando elementos indígenas, negro e europeu.

A chuva prometida para a capital não permitirá que a festa aconteça na rua, mas ainda assim, o grupo que organiza o Dia do Saci realiza uma série de atividades ao longo do ano, com apresentação de vídeos, conversas nas escolas e a manutenção de uma página sobre o Saci na rede mundial de computadores.

Os mitos brasileiros são nossa herança cultural e não podem morrer. Eles mudam, se transformam, se atualizam, mas seguem apontando caminhos. Por isso, não se perdem. Então, preste muita atenção quando passar pelos bambuzais que ainda resistem por aí na ilha de Santa Catarina. Ao ouvirem os barulhinhos de “cloc, cloc, cloc”, atentem-se. São os Sacis nascendo. Eles nascem dentro dos bambus. E estão vindo, aos milhares, pulando em uma perna só, fazendo bagunça na proposta de destruição cultural que o império tenta nos impor.

O Saci vive e está bem aí, do seu lado. Com ele, voam as bruxas da ilha, balançando as cabeleiras e enroscando nossos corações. Acredite!

Conheça tudo sobre o Saci: https://www.facebook.com/salveosaciperere/

Sobre o Dia do Índio

 

 
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