por Guilherme Scalzilli
O alvo simbólico da greve geral foi o golpe parlamentar que empossou Michel Temer. As reformas forneceram um mote persuasivo às mobilizações, dando-lhes verniz apartidário, mas são indissociáveis do impeachment que as tornou ilegítimas. Reduzir a paralisação a pautas trabalhistas seria tão enganoso quanto ver na corrupção o único incentivo das passeatas de direita do ano passado.
Prova do subtexto político incontornável é a defesa apaixonada que as reformas recebem, na mídia corporativa, dos recentes porta-vozes do golpismo. O boicote do noticiário e as tentativas de enquadrar a greve nas bolhas ideológicas de praxe repetem os artifícios da propaganda jornalística do impeachment. Não mudou sequer a retórica salvacionista.
O elo das reformas com o golpe transparece também nos interesses atendidos por ambos. Aos privilégios resguardados no arrocho das aposentadorias somam-se antigas demandas do patronato no âmbito da CLT. Os mesmos lobbies parlamentares que derrubaram Dilma Rousseff patrocinam os arbítrios reformadores.
Em outras circunstâncias, as questões envolvidas mereceriam debates mais profundos e consequentes. Seria interessante abordar o nebuloso Sistema S, a chamada “pejotização”, os tetos salariais do funcionalismo público, o papel da própria Justiça do Trabalho na gradativa inviabilização da CLT, e por aí vai.
Acontece que esses temas atingem o conluio institucional golpista, inclusive as empresas de comunicação, que bloqueiam qualquer avanço conscientizador da sociedade. Numa agenda tomada pela falácia do déficit previdenciário e pela demonização dos direitos trabalhistas não há desdobramento aceitável. E a ideia é justamente levar o imbróglio ao confronto ideológico, para resolvê-lo de maneira autocrática e vertical.
Soa precoce, portanto, o otimismo com o sucesso da greve. O esperado adiamento das reformas reflete mais um impasse nos escambos fisiológicos parlamentares do que uma súbita preocupação com a vontade popular. Como ocorreu no impeachment, assim que as circunstâncias permitirem, a pauta irá a votação, do jeito que der, antes que o assunto seja absorvido pela disputa sucessória.
Mesmo desfiguradas, as reformas viraram questão de honra para o condomínio do impeachment, o último legado possível de uma aventura que já perdeu todas as outras plataformas saneadoras. A repressão criminosa das forças (“trajadas como”) policiais mostra que, no limite, a coisa será resolvida na porrada.
Mas era de golpe que falávamos, afinal de contas.
Publicado originalmente no Blog do Guilherme Scalzilli.
Obra gráfica de Millôr Fernandes no Instituto Moreira Salles