FLIP – Em entrevista ao programa Roda Viva, em 1989, Millôr Fernandes, homenageado da FLIP (Festa Literária de Paraty) deste ano, fuzilou: ”eu acho a popularidade uma coisa extremamente vulgar, posso parecer elitista, mas eu não quero ser reconhecido na rua”. Segundo ele, a fama transformava a pessoa em “uma entidade vaga que o cara viu e achou bonitinho”. Assista a entrevista.
Na Festa Literária de Paraty (FLIP), cada fala dos escritores, por mais genial ou idiota, reverbera e trilha um longo caminho: plateia de 850 pessoas com ingressos esgotados há tempos, um telão atrás da tenda principal e outro na praça principal da cidade, trechos das conversas e áudios integrais no youtube, cobertura da grande mídia e a divulgação espontânea ou não pelas redes sociais. Durante os cinco dias da festa, entre os dias 30 de julho e 3 de agosto, o incauto até pode acreditar que a literatura saiu dos círculos acadêmicos e literários e contaminou no bom sentido milhões de pessoas e batalhões de leitores black blocs saquearão a livraria mais próxima. Vaga ilusão.
Longe de mim a defesa do escritor incompreendido em sua torre de marfim em busca da frase certa, bolando o romance que irá mudar o mundo, mas tenho dúvidas de que a espetacularização da figura do escritor democratize o acesso aos livros. Estive na FLIP e vi o escritor sendo valorizado e isso é legal. A grande maioria deles sacrifica sua vida na tentativa de viver de seu trabalho e vamos combinar que ninguém escreve para ser ignorado e viver no obscurantismo. Aqui (e sempre) cabe outra frase de Millôr: “não ter vaidade é a maior de todas”.
Evento literário mais importante do país, a FLIP fez uma homenagem justa a uma figura ímpar e genial como Millôr e contou, neste ano, com 47 autores de 15 países, que trataram de vários temas urgentes como a situação de abandono dos índios, os 50 anos da ditadura militar, o domínio da indústria alimentícia sobre nossos hábitos, depressão psicológica, os novos caminhos do jornalismo e alguns outros.
Antes do início do festival em Paraty, seu curador, Paulo Werneck deu o tom: “procurei ver como todos [os escritores] falavam em público. Hoje, o escritor é uma figura que tem um aspecto de performance”. No final da feira, Werneck comparou a FLIP a um festival de rock e disse que “a gente conseguiu oferecer muitos ângulos, portas de entrada para o público”. Adoro festivais de rock e é certo que a literatura conta com concorrência pesada hoje em dia em mais de uma centena de canais a cabo, na internet, DVDS, Netflix, e inclusive dos festivais de rock, porém, o escritor nunca conseguirá concorrer, por exemplo, com os vlogueiros moderninhos que produzem vídeos de conteúdo irrelevante e assistidos por milhares de internautas. Sem purismos, cada um no seu quadrado.
Hoje parece tão importante quanto o talento do escritor suas habilidades de palestrante, ator ou showman. E se o espetáculo do escriba em um palco contém frases de efeito, é divertido e espirituoso, seus livros estariam fadados a ocupar as posições mais altas das listas dos mais vendidos.
Em entrevista ao genial humorista e ativista Rafucko, o escritor João Paulo Cuenca vai na contramão de Werneck: “existe uma espetacularização da figura do escritor, eles ganham hoje alguns trocados para falar sobre sua literatura para pessoas que não vão consumir mais do que aquilo, isso é bom, mas gostaria que as pessoas lessem os livros, me incomoda perceber que eu estou sendo consumido não pelo que escrevo, mas por uma performance”. Assista ao programa do Rafucko com Cuenca.
Basta ler algumas de suas crônicas ou poemas, para sacar que talento não falta a Gregório Duvivier, integrante da trupe Porta dos Fundos. Os vídeos do Porta, como é conhecido pelos fãs do canal da web, já totalizaram um bilhão de visualizações. Mesmo com dois livros publicados e possuidor de um canudo em Letras pela PUC do Rio de Janeiro, o perspicaz Duvivier ironizou sua presença anunciada com destaque na FLIP: “é humilhante falar depois da Eliane [Brum], ela está salvando populações ribeirinhas e eu tenho um canal de humor no Youtube”. Ponto pra ele. Ele participou da mesa literária ao lado do poeta Charles Peixoto e da jornalista e escritora Eliane Brum.
Poucas horas depois, Duvivier já estava no Instituto Moreira Salles (IMS) conversando sobre um de seus romances preferidos, O Estrangeiro, de Albert Camus. E a jornalista descolada estava curiosa em saber quando ele iria escrever o seu romance. Com menos de 30 anos, Duvivier respondeu meio sem jeito que ainda não teve uma ideia que valesse a empreitada.
Tão jovens quanto Duvivier, a neozelandesa Eleanor Catton, de 28 anos, e o suíço Joël Dicker, de 29 anos, venceram importantes prêmios literários. O romance A verdade sobre o caso Harry Quebert deu ao suíço o Prix de l`Académie e o catatau de quase 900 páginas Os Luminares de Canton lhe garantiu o Man Booker Prize. Ambos dividiram uma mesa literária e foram chamados pelo mediador José Luiz Passos de “dois autores vergonhosamente jovens e bem-sucedidos”.
“Celebridade é um idiota qualquer que aparece na TV”
Millôr Fernandes
Enquanto os bem-sucedidos habitam a Tenda dos Autores, aspirantes tentam seu lugar ao sol na pequena casa do Clube de Autores, site que viabiliza a publicação de livros de escritores iniciantes. Na quinta, dia 31 de julho, um autor anônimo de Macapá fazia digressões sobre a antiga Macapá, aquela que não existe mais, de bairros charmosos e arquitetura preservada para meia dúzia de pessoas. Não passei da página 10.
Na penúltima noite da FLIP, a sensação era de que uma nuvem de gafanhotos dizimou a livraria oficial da festa, a da Travessa. As enormes pilhas de livros dos autores do evento no primeiro dia da festa foram reduzidas a montinhos de meia dúzia de exemplares. Quem sabe, o público da FLIP leia os livros adquiridos e, com isso, cometam uma indelicadeza com o mestre Millôr tornando obsoleta uma de suas frases: “um escritor é famoso no dia em que gente que nunca o leu começa a dizer que já”.