Sempre passo por um Uno cinza estacionado próximo à minha casa. No banco traseiro, folhetos com fotos de paradas militares, jornalecos com frases nacionalistas e bandeiras do Brasil. Outro dia, me assustei com um livro no banco traseiro, na capa, uma foto tosca do ex-presidente Geisel e o título: “A verdade sobre Ernesto Geisel”.
Fui comprar pão e defronte à casa, um senhor de uns 70 e alguns anos com esguicho na mão placidamente a molhar suas plantinhas. Blasfemei em pensamento: “torturador, milico desgraçado, deve ter aprontado todas durante a ditadura e agora aí como se nada tivesse acontecido”.
Pensei em denunciá-lo ao Levante Popular da Juventude para que recebesse o devido esculacho, mas odeio injustiças. E se ele for apenas um senhorzinho nacionalista em busca de uma ocupação na aposentadoria.
O Levante encontra a morada de agentes do regime militar e grita aos quatro ventos que naquele endereço habita um criminoso. Foi isso que o Levante fez com o coronel reformado Maurício Lopes Lima, que foi reconhecido pela presidenta Dilma Rousseff como torturador da Operação Bandeirante, no município do Guarujá, litoral de São Paulo. (saiba mais)
O reacionário de plantão pode me acusar de revanchista. Mas não acho certo um torturador comprar morangos de Atibaia na feira aos domingos numa buena. Cuidado, aquele seu vizinho inofensivo de quarta idade pode ser um sádico torturador. Se for, devia puxar, no mínimo, uns meses em cana comendo rango azedo.
O argumento de que os dois lados cometeram crimes e que os movimentos que lutaram contra o regime assaltaram bancos e infringiram a lei mostra apenas uma parcela da verdade. Centenas de”guerrilheiros” passaram o diabo nos porões da ditadura, isso não é pagar?
Se foi uma guerra, para dizer o mínimo, foi desigual. O poder do Estado e seu organizado sistema de repressão contra uma parte da população que revoltou-se contra a censura e a opressão com baixo preparo militar, com exceções. (Leia texto “Esquerda já foi julgada e condenada, diz jurista” no blog do jornalista Roldão Arruda em http://tinyurl.com/cpylns8).
O recente lançamento do livro “Memórias de uma Guerra Suja”, em que o ex-agente da repressão, Cláudio Guerra, mostra como o regime militar não tinha limites. O ex-delegado, agora evangélico, afirma que uma usina de cana de açúcar, em Campos, no Rio de Janeiro, foi usada para incinerar 11 ex-prisioneiros políticos. (Leia mais sobre o livro em matéria “Auschwitz da ditadura” da revista Istoé em http://tinyurl.com/d48basc).
Mano Brown e seu Racionais Mc’s que acabaram de gravar cilpe de sua música Marighella (ouça em: http://tinyurl.com/7ds8f2d) nos faz relembrar de frase do guerrilheiro mulato: “o homem deve ser livre… O amor é que não se detém ante nenhum obstáculo, e pode mesmo existir até quando não se é livre. E no entanto ele é em si mesmo a expressão mais elevada do que houver de mais livre em todas as gamas do sentimento humano. É preciso não ter medo” (Carlos Marighella).
Que a instalação da comentada Comissão da Verdade pelo governo nos faça um povo mais em paz com seu passado de terror e morte. Oxalá!