O Facebook é a maior autocracia (*) do mundo, com nada menos do que quase três bilhões de membros. Mas apesar deste poder inédito na história humana, o império criado por Mark Zuckerberg virou alvo de uma coalizão heterogênea de interesses políticos, comerciais, ideológicos e culturais aglutinados de forma aleatória a partir das mudanças provocadas pela chegada da era digital.
O cerco à autocracia liderada por um jovem de 37 anos é mais uma escaramuça entre duas maneiras de ver o mundo em que a principal característica é a impossibilidade de usar os parâmetros atuais para avaliar uma crise como a que envolve a maior rede social do planeta. O enquadramento do Facebook no mundo atual tornou-se um desafio a todos nós, usuários e tomadores de decisões políticas, tecnológicas e econômicas.
É uma tarefa complexa porque o Facebook tanto pode ser visto como algo associado às práticas típicas de regimes medievais como a uma revolucionária utopia digital. A rede criada há menos de 18 anos virou um divisor de águas que embaralhou o contexto político-ideológico contemporâneo na medida em que posicionamentos ditos progressistas podem vir a assumir um formato conservador e vice versa, dependendo do tema em debate.
Se partirmos da maneira como o Facebook usa o centralismo administrativo interno, definido como uma autocracia, estamos debatendo uma forma arcaica de poder unipessoal, de manejo antiético do sigilo dos dados cedidos gratuitamente pelos usuários e administrados por misteriosos algoritmos (robôs automáticos), bem como uma máquina de manipulação de informações com imprevisíveis consequências políticas, econômicas, sociais e culturais. Algo simplesmente assustador.
Mas se olharmos a empresa de Zuckerberg de outro ângulo, o das inovações tecnológicas da era digital, o panorama é diferente. Estamos diante do protótipo mais bem sucedido, até agora, de estruturas sociais baseadas na dinâmica comunicacional criada pelas novas tecnologias digitais de informação e comunicação (TICs). Os três bilhões de usuários da rede estão espalhados pelo mundo inteiro, livres para interagir entre si e limitados apenas pelos programas e equipamentos desenvolvidos pelo Facebook e administrados por um exército de algoritmos, responsáveis pelo controle do tráfego das mensagens entre usuários.
Questão de sobrevivência
Até agora o cerco ao Facebook era promovido por governos nacionais preocupados com o crescente poder da rede de interferir no debate político e por conglomerados jornalísticos assustados com a acelerada migração de audiências e anunciantes para a empresa de Mark Zuckerberg. Para a grande imprensa mundial tornou-se uma questão de vida ou morte parar a expansão do Facebook .
Mas desde o depoimento de Frances Haugen, ex-integrante da Equipe de Integração Cívica do Facebook, a rede social entrou também na mira das organizações de defesa da família e de proteção aos adolescentes nos Estados Unidos. A Equipe de Integração Cívica é um grupo formado por funcionários do Facebook encarregados de monitorar a relação ente a rede e seus usuários. Frances disse à imprensa norte-americana e depois em depoimento no Capitólio (Congresso dos EUA) que conteúdos divulgados pelo site Instagram (controlado pelo Facebook) provocam alterações nos hábitos alimentares, geram ansiedade, depressão e até suicídios entre meninas adolescentes. Foi um duríssimo golpe na imagem pública da empresa, que sentiu o impacto e reagiu com justificativas e desculpas quase encabuladas.
A ofensiva anti-Mark Zuckerberg saiu do terreno político e moral para entrar no espaço doméstico, o que de imediato elevou a temperatura do debate em torno dos mal-feitos do Facebook. O que antes estava restrito a uma batalha entre lobistas a partir das denúncias de Frances Haugen, entrou para as conversas familiares na hora do jantar, semeando a possibilidade de uma migração de usuários rumo a redes concorrentes.
O vírus da dúvida sobre a integridade cívica e moral da autocracia chefiada por Mark Zuckerberg tornou-se mais agressivo em abril de 2021 quando Sophie Zhang, uma especialista em processamento de dados e ex-funcionária do Facebook denunciou ao jornal britânico The Guardian a cumplicidade da rede com violações dos direitos humanos cometidas por governos de oito países, entre eles o Brasil.
O jornal The Wall Street Journal ( WSJ) , integrante do mega conglomerado jornalístico News Corporation ampliou o cerco ao publicar, agora em setembro, uma série de reportagens com pesadas acusações ao complexo de empresas formado pelo Instagram, Whatsapp e Facebook. O bilionário australiano Rupert Murdoch é o dono da News Corporation e um obstinado desafeto de Zuckerberg a quem acusa ser o pior inimigo dos grandes jornais mundiais. O Journal mostrou, baseado em documentos internos e depoimentos de funcionários do Facebook, como a empresa de Mark conhece os problemas causados pela veiculação de mensagens falsas ou distorcidas, mas os ignora deliberadamente.
Jeff Horowitrz, o autor da investigação publicada pelo WSJ afirma que o dono do Facebook tem pleno conhecimento dos problemas e compartilha a decisão de ignorá-los. Garante também que a equipe de Mark criou um sistema chamado XCheck que privilegia a veiculação de mensagens postadas por clientes preferenciais, mesmo que elas violem as regras éticas e profissionais da rede. É a brecha por onde passam mensagens difamatórias, fake news e incitação à violência física ou moral, bem como postagens eleitorais notadamente de candidatos conservadores e ultradireitistas.
A exploração do usuário
O cerco à maior rede social virtual do planeta depois das últimas denúncias mudou de estratégia e agora foca mais na questão moral do que nas questões financeiras e políticas. O Facebook está sendo acusado de colocar os lucros acima da preocupação com os interesses, necessidades e o bem-estar de seus usuários. A obsessão com o faturamento alimenta a estratégia de usar recursos tecnológicos, éticos ou não, para estimular os likes, compartilhamentos e a permanência de visitantes pelo maior tempo possível na rede.
Para o cidadão comum, é indispensável eliminar o modelo de captura de dados de usuários que são convertidos em acervo informativo altamente valorizado e usado posteriormente para negócios bilionários. Os usuários cedem tudo gratuitamente e não participam dos lucros obtidos pelas empresas de Mark Zuckerberg, numa troca claramente desigual. Enquanto este esquema não for alterado, todas as redes sociais virtuais continuarão a faturar bilhões de dólares às custas de dados entregues de graça por seus usuários.
A batalha do Facebook ainda vai durar muito tempo porque ela ocorre num terreno minado por interesses político-eleitorais e empresariais envolvendo algumas das maiores corporações midiáticas do planeta. O cerco ao Facebook pode evoluir para o desmembramento da empresa, com a venda do Instagram e WhatsApp ou para um complicadíssimo debate sobre a regulamentação das redes sociais virtuais. O mais provável é que este confronto terminará sem vencedores. A autocracia de Mark Zuckerberg pode sofrer duros golpes num futuro próximo, mas seus desafetos, especialmente na imprensa, dificilmente poderão cantar vitória, pois estão apenas tentando adiar um inevitável fim de um negócio outrora bilionário.
(*) Governo de um único homem, não necessariamente ditatorial.