“(…) A tempestade que faz dobrar as bétulas
É tida como violenta
E a tempestade que faz dobrar
Os dorsos dos operários na rua?”
– Bertolt Brecht
Quais os vestígios que sobrevivem ao tempo? O que permanece na lembrança coletiva? As ruínas de pessoas supostamente ilustres em outras épocas são capazes de conversarem, num diálogo franco, com a gente que vive neste instante, neste agora que sempre desaparece?
Desse tal Baltazar Fidelis restou apenas o arremedo que chamam de estação ferroviária, pouco mais de meio século atrás a dependência que demarcou o quilômetro 113 da Santos-Jundiahy, era chamada apenas por Paradinha, uma choupana, um apeadeiro sem cobertura, sem cercas, onde moradores de rua, galinhas, marrecos, passageiros e o mato disputavam espaço ao longo do dia e da noite.
Os monumentos públicos, as ruas e os edifícios entronam repetidas vezes a história de quem vence: quase sempre são santas e santos, militares bolorentos, delegados locais, doutores sem doutorados, políticos e demais personalidades endinheiradas, mas quem reaviva os espaços é a gente anônima através das épocas – gente que sobrevive, principalmente com a tarefa de pagar contas.
Chegam a minha mente duas perguntas óbvias: quando, para além dos livros de história, o povo será lembrado? Até quando esses trens vão tratar as pessoas como baratas?
A população que embarca na CPTM se revoltou tantas vezes e ainda se revoltará muito. Triste é ter os olhos para o ontem ou o amanhã, mas sempre carecer das urgências de hoje.
Em 1996, eu nem sequer imaginava pegar um trem sozinho, ir para São Paulo e ficar longe dos olhares acautelados dos meus pais, em 1996, entre setembro e outubro, milhares de usuários paralisaram a via na altura da estação Jaraguá, os protestos se espalharam por todas as direções apontadas por trens e metrôs. Espalhou-se pela cidade. Depredações e gritos ecoavam a raiva contida dos vencidos. Mas dessas lutas poucas fotos restaram – o que continua é esse gosto amargo da submissão na garganta. Naquele tempo ainda existiam surfistas de trens que se arriscavam, driblavam fios de alta-tensão, viajavam como insanos sobre os tetos do lixo férreo; e naquele tempo a estação Baltazar Fidélis quase foi reduzida a pó.
De lá pra cá, somente as fachadas mudaram, um pouco.
A multidão que observo é a comunidade imaginada por mim, a cada dia, ela perde um pouco mais de humanidade dentro dessas latarias. Há risos, encontros, amores e amizades, mas o que predomina na linha 7-Rubi é o tédio acumulado, um grande cansaço.
Esses trens são azeitados com suor das testas pobres. A maioria dos que usam o trem ganha por dia menos do que custa o quilo da carne moída razoável; e a maioria dos que se apertam nos trens quase não fazem uso de serviços particulares: usam trens, usam ônibus, escolas, hospitais e cemitérios, todos públicos – e é essa parcela do povo que permanecerá sendo atingida pela pandemia e suas outras mazelas.
Meu inconformismo de jovem saído do chão de fábrica esfriou. Os trens e as salas de aula me testaram por anos, já antes de 2007, quando fui para a recém-nascida Unifesp. Voltei para o interior, anos depois, com três diplomas, mas sem perspectiva de emprego certo. O trem contribuiu para que São Paulo fosse mais minha casa do que Jundiahy, mas também encubou meus ódios e fracassos.
Os vagões que nos carregam não falam o português refinado das teses de mestrado da USP; e os vagões que exalam, num só dia, lavanda e também prensado desconhecem a maioria dos intelectuais que moldaram a suposta identidade brasileira. Mas são esses milhares de usuários que conduzem suas vidas de forma corajosa, de um modo que eu já não consigo conduzir. Meus delírios de esperança sempre apelam, que droga.
– A CPTM informa: paramos para aguardar liberação da passagem no trecho à frente – disse.
Na plataforma as portas abrem-e-fecham, abrem-e-fecham, abrem-e-fecham.
Ouço então o barulho de rodinhas contra o assoalho emborrachado. Só quando o trem recomeça a andar é que vejo outro mendigo de sempre: sem camiseta, de longos cabelos ensebados, esquálido, com as duas pernas recurvas, feito galhos do cerrado, que se equilibram sobre a prancha de um skate velho – talvez acidente, talvez paralisia infantil.
A icterícia é escancarada e suas mãos estão cheias de calos, nós e secas feridas. Eu sei, e muita gente aqui sabe também, que ele se arrasta neste chão movediço para tentar vender raspadinhas da sorte, ou apenas pedir trocados. Schopenhauer dizia que toda dor alheia acalma a nossa própria angústia, mentira! Que grandessíssimo velho sábio filho da puta.
É por tantas cenas como essas que, nos trens, tudo sobrevive de forma um pouco invisível, ou inexistente. Esse pedinte que roda sobre um skatinho eu vejo por aqui há pelo menos quinze anos Esse cotidiano jamais será lembrado, nomes de mendigos não batizam ruas, avenidas ou praças.
O trem é uma gaiola dentro do mundo, outra gaiola. Seguimos, empoleirados. Que bela bosta.
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