por Frei Betto
Por que tanto ódio nas redes sociais? Por que muitos expõem ali o que há neles de mais perverso e maldoso? Agora, o adversário vira inimigo; o opositor, desafeto; o diferente, antagônico. A razão naufraga sob o niilismo exacerbado e a emoção explode a flor da pele em surpreendente ferocidade.
Freud, em “O mal-estar na cultura”, frisa que a vida em sociedade nos induz a reprimir as pulsões. O outro é o nosso limite. E Lacan nos faz entender que, na tensão entre a pulsão e a cultura, não temos outro recurso além da linguagem. E ela é sempre dúbia. Assim, na vida social como no trânsito, somos capazes de ler a sinalização e procuramos nos conduzir de modo a evitar acidentes.
As redes sociais, no entanto, são o somatório de individualidades recolhidas a seus respectivos nichos ou trincheiras. Muitos se encastelam no próprio ego e perdem horas no pingue-pongue narcísico em torno de vidas alheias. Não comunicam ideia, sugestão ou atividade. Apenas praticam o onanismo cibernético.
O outro deixa de ser real. É virtual. E o emissor canibal já não precisa conter as suas pulsões e moderar a sua linguagem. Julga-se inatingível. Acima de qualquer padrão civilizatório, capaz de ditar regras de educação recíproca, ele se arvora em juiz implacável com direito de ofender e ridicularizar os réus de suas amargas emoções.
Na infovia, o ego implode o superego e abre o canal para que venham à tona as pulsões mais primitivas. O assassino virtual promove a morte simbólica de todos que estão focados no alvo de seu ódio: Marisa Letícia; Maria Júlia Coutinho; Leonardo Vieira; réus da Lava Jato etc. A diferença é que não aperta o gatilho, apenas digita.
Esse gozo pulsional, que impele à satisfação imediata, ignora toda escala de valores. E infantiliza, faz a pessoa retroceder à fase da irresponsabilidade. Destitui-se o sujeito racional que ela deveria ser. As “feras” do inconsciente afloram. O réptil que habita cada um de nós expele, enfim, o seu veneno.
O sujeito racional exerce vigilância sobre si mesmo e delega poderes às instituições (judiciais, policiais etc.) que têm por função assegurar à sociedade um mínimo de harmonia. Essa repressão cria as condições de sublimação e, portanto, de cultura e civilidade. Sem ela, o outro se torna objeto de abjeção.
Não podemos saciar todos os nossos desejos. Os limites são intrínsecos à nossa liberdade, que se funda nas opções, nas escolhas, e não na pulsão. Porém, na era pós-civilidade o inconsciente se vê livre de suas amarras e rejeita a sublimação. Isso favorece a postura anti-humanista de desprezo pelos direitos humanos e pela democracia.
É hora de famílias, escolas e outras instituições sociais cuidarem da educação digital das novas gerações. Não basta dominar as novas tecnologias. Elas são apenas ferramentas. Uma sociedade de conhecimento se constrói com conteúdos humanísticos respaldados pela ética e pela globalização da solidariedade. Sem avançar nessa direção, corremos o risco de inviabilizar o projeto de uma humanidade ancorada na justiça e vocacionada à paz.
Publicado originalmente no Correio da Cidadania.
O binômio fake news/redes sociais nos impõe novos comportamentos políticos
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