por Carlos Fico
FHC e Lula têm dívida com o Brasil. Ambos adotaram a repartição dos cargos ministeriais entre base partidária ampla para garantir a aprovação de iniciativas governamentais pelo Congresso Nacional.
FHC associou-se ao PFL (os dissidentes do PDS, sucedâneo da ARENA) e a partidos fisiológicos. Lula se associou ao PMDB e a partidos fisiológicos.
Para governar, ambos ficaram prisioneiros das demandas por cargos e outros benefícios feitas por parlamentares em troca de seus votos.
Há indicadores muito consistentes de que ao menos fizeram vista grossa para as diversas modalidades de crimes que esse procedimento gerou (caixa dois, propina travestida como financiamento de campanha e corrupção stricto sensu).
Fernando Henrique e Lula também se sujeitaram aos malefícios administrativos da prática, pois até mesmo ministérios e empresas estatais foram entregues a partidos que indicaram pessoas desqualificadas e/ou envolvidas em esquemas criminosos para geri-los.
Ambos fundamentaram a prática em razões supostamente pragmáticas e realistas, pois não teria sido possível governar de outro modo. Esse modelo foi aceito por boa parte da chamada opinião pública como inevitável, malgrado algum desconforto ou críticas pontuais.
Essa forma de governar expressa visão de fundo autoritário pois supõe que o projeto de governo em questão possui qualidades tais e tão definitivas que justificam a associação com os setores corrompidos da política.
Ela também é antipopular – e nesse sentido, antidemocrática – porque não acredita na possibilidade de convencimento da maioria do eleitorado sobre a necessidade de medidas de estabilidade da economia ou de justiça social. Como consequência, colabora para a instauração de cenário de antagonismo político que não tem correspondência com suficiente diferenciação de programas de governo. Isto é, a ferocidade da oposição entre eleitores do PSDB e do PT não equivale à distinção entre os governos respectivos (política econômica assemelhada, manutenção/ampliação de programas sociais etc.).
A persistência do modelo de repartição das franjas do poder e sua eficácia operacional deu grande impulso à mudança histórica no padrão de corrupção que muitos empresários brasileiros praticam desde a época das grandes obras da ditadura militar: antes, buscava-se corromper instâncias do Poder Executivo; nos últimos vinte anos, o foco passou a ser a aprovação de legislação favorável no Congresso Nacional. Assim, a governabilidade associou-se a interesses empresariais e partidários escusos. Houve uma mudança de escala evidente nos governos do PT e os escândalos avolumaram-se.
As investigações revelaram cifras e envolvimentos que surpreenderam até mesmo os que já tinham notícia das práticas de compra de votos, de caixa 2 etc. A maneira como as investigações são conduzidas, com alto grau de politização e inevitável moralismo, tem gerado grande expectativa na população segundo a qual a punição judicial terminará com os descalabros.
Essa expectativa será inevitavelmente frustrada, como se viu recentemente: empresários continuaram corrompendo mesmo no auge da Operação Lava Jato, assim como políticos que vendiam imagem de probos são desmascarados como gângsters.
A frustração não favorece a proposição de novas medidas incrementais, como foram o controle da inflação e da dívida externa, a adoção de políticas sociais compensatórias, o fortalecimento do Ministério Público, além de muitas outras medidas benéficas que tornaram o Brasil melhor, embora muito lentamente, de diversos pontos de vista. Muito ao contrário, a frustração das expectativas criadas pela Lava Jato tende a estimular o surgimento de propostas salvacionistas e/ou demandas por soluções que supostamente comecem do zero, como eleições diretas.
Se o atual presidente renunciar ou for afastado pelo TSE, haverá que se escolher novo presidente. Contra o que estabelece a Constituição, o eleitorado tende a clamar por eleição direta, dada a tremenda fragilidade do atual Congresso Nacional que tem muitos parlamentares investigados: não haveria legitimidade na eleição indireta.
Cientistas políticos com posição liberal extremada sustentam que o mandamento constitucional deve prevalecer a qualquer custo, independentemente do clamor popular, que seria simples resultante do “populismo” ou da demagogia conduzida pela esquerda.
Essa visão é estreita e deve ser denunciada. Mas a Constituição deve ser obedecida, sobretudo em momentos de crise como o atual.
Esse impasse demanda soluções elevadas, que passam por algum tipo de transigência em torno de programa mínimo: (a) a mudança das regras que permitem a proliferação de partidos de aluguel, sem representação popular, bem como do próprio sistema de eleição proporcional, que poucos eleitores conhecem; (b) a óbvia necessidade de estabilização da economia. Esses dois pontos poderiam servir de base. FHC e Lula têm dívida com o Brasil. Se tivermos um governo, por eleição indireta, para cumprir mandato tampão, o tempo seria bem aproveitado se algo nesse sentido fosse feito. Lula e FHC deveriam conduzir conversações para chegarmos a candidato comum – não eles – de pacificação nacional em torno de programa mínimo viável. Até porque o mandato tampão será muito curto. Somente um gesto tão surpreendente como esse seria capaz de conferir alguma legitimidade à eleição indireta.