por Fernando Silva do Correio da Cidadania
“Hecatombe”. “Terremoto”. “Bomba nuclear”. “Lista do fim do mundo”. Estas são algumas das expressões usadas nos últimos dias para se referir à divulgação da lista do ministro do STF Edson Fachin, em 11 de abril, em que pediu abertura de inquérito para três governadores (além de remeter 9 outros para o STJ, comprometendo 12 dos 27 governadores), 24 dos 81 senadores, 8 ministros do governo Temer e 39 deputados federais, além de dezenas de políticos dos mais altos escalões dos partidos dominantes na cena nacional nas últimas três décadas. O segundo tempo da “hecatombe” está sendo jogado na liberação dos vídeos das delações dos executivos da Odebrecht, que aumenta ainda mais o impacto e amplitude das denúncias.
Está ruindo, ao que tudo indica de forma definitiva, o modus operandi do regime político “democrático” da Nova República, estabelecido pela Constituição de 1988. São trazidos a público os detalhes da corrupção aberta e escancarada nas relações empresarias com o Estado, do financiamento de campanhas eleitorais bilionárias com dinheiro desviado de obras públicas e do enriquecimento de políticos dos principais partidos e coalizões de poder – produto da relação promíscua entre partidos e políticos da ordem com as grandes empreiteiras, via pagamento de propina e favorecimento às empresas nos negócios com o Estado.
Não é necessário aqui estender-se nos números, embora os valores envolvidos na casa de R$ 470 milhões em pagamento de propina, somente neste lote de denúncias da lista de Fachin, impressione. Mas o mais impressionante mesmo é a debacle do atual sistema político. Quatro ex-presidentes envolvidos, de Collor a Dilma, passando pelos mais significativos destas duas últimas décadas: FHC e Lula. Cúpulas e vários dos principais expoentes do PT, PMDB e PSDB encabeçando a lista de partidos com maior número de denunciados; 65% da base de sustentação do ilegítimo governo Temer, seu núcleo dirigente diretamente envolvido, as presidências das duas casas, ex-presidentes das casas, governadores e ex-governadores, prefeitos e ex-prefeitos.
A lamentar a preservação de Temer entre os investigados, acusado de sacramentar uma doação de US$ 40 milhões da Odebrecht para o PMDB. Dada sua condição de presidente, ele não pode ser legalmente acusado até o final do mandato, condição estranha, diretamente questionada pelo PSOL, que corretamente entrou com pedido no STF para que o presidente também entre no rol dos investigados, pois as delações dos executivos da Odebrecht são muito contundentes sobre o lugar ocupado por Temer nesse banquete em que o PMDB foi dos mais esfomeados participantes.
Algumas primeiras considerações
Independentemente do desfecho jurídico, do ritmo das investigações e suas conveniências políticas, precisamos debater um primeiro leque de conclusões ou hipóteses (para sermos mais cauteloso) e iniciativas políticas.
A primeira delas, em termos muito práticos desta sequência de tsunamis, é que se abre uma brecha enorme para tentar derrotar as reformas liberais e o governo Temer. A combinação desta turbulência com a greve geral marcada para 28 de abril coloca em questão o cenário de mudança de conjuntura, onde o protagonismo das ações massivas dos trabalhadores e trabalhadoras, sem-teto, juventude, sem-terra, indígenas pode derrotar o governo Temer e impor uma nova dinâmica, a tornar inviável a aprovação das suas reformas.
Evidentemente, é uma hipótese de cenário, mas é fato que a fenda e confusão do lado de lá estão abertas e talvez não tenhamos oportunidade tão nítida para barrar as reformas. Até os analistas de mercado, segundo a própria Globo News, avaliam que a “classe política” não tem credibilidade para aprovar reformas como a da Previdência.
Agrava-se também a crise de representação política tradicional, chegando ao seu ponto máximo até aqui, o que produz incertezas maiores sobre como se reorganizarão os partidos da ordem e sua institucionalidade. Vale registar que este processo teve sua primeira demonstração nas jornadas de junho de 2013. Portanto, a rejeição a partidos, instituições e à política corrupta do regime produziu um grande golpe na sua popularidade e credibilidade pela via da ação de milhões nas ruas, especialmente as camadas mais jovens da população.
De lá cá para cá, em que pese a direita ter ganhado a disputa das ruas e no campo das ideias (muito ajudada pela inestimável contribuição dos rumos políticos, econômicos e éticos dos governos petistas), a degradação do regime político da Nova República foi contínua e segura, chegando agora à revelação explícita de esquemas de corrupção articulados por suas principais lideranças.
Acaba qualquer vestígio de legitimidade política do governo Temer para fazer o que quer que seja de relevante em termos de medidas e votações. O que já era ilegítimo agora é inaceitável. Temer assume quando o grande Capital e suas representações políticas e judiciais chegam à conclusão de que o governo Dilma não era mais capaz de aplicar as severas reformas liberais exigidas pelo mercado e nem tirar a economia da recessão.
Em que pese os governos petistas não terem sido governos de enfrentamento ao Capital, muito pelo contrário, apelou-se a um golpe parlamentar, em 17 de abril de 2016. Daquele show de horrores da votação do impeachment em rede nacional resultou um governo ilegítimo, impopular, reacionário e nos trending topics de envolvimento na corrupção.
Após a divulgação da Lista Fachin, será um golpe ainda mais desavergonhado se este governo quiser impor à sociedade qualquer tipo de reforma, previdenciária, trabalhista, política ou qualquer outra.
Mas se parece certo que o funcionamento do atual regime não tem como ficar mais do jeito que está, é preciso estar atento ao tipo de mudanças que podem vir no horizonte e quais seus vetores. O crescimento do ódio aos políticos e a negação da política podem favorecer saídas autoritárias, populistas de direita ou de figuras “apolíticas” por dentro dos partidos tradicionais. Como mínimo, o crescimento de candidaturas com estes perfis nas eleições de 2018 é bem previsível.
Assim como devemos rechaçar saídas conservadoras, como o acordão FHC-Lula-Temer para salvar a pele de todos ou reformas desta mesma Nova República, que vai tentar se aproveitar para atacar direitos democráticos a fim de reduzir e banir partidos ideológicos da esquerda.
Em que pese a desmoralização reinante não é descartado este tipo de cenário (reformas dentro do que já está irreformável), apoiado num clamor punitivista e por meio de personagens antipolíticos para criminalizar a política, em seguida a luta social e os movimentos. Assim, tentar-se-ia moralizar o regime político e a ordem, com uma cara “mais enxuta”.
Por fim, das mais importantes questões, e a mais relevante em termos de reorganização da esquerda no Brasil, é a conclusão inequívoca de que o lulismo esgotou-se não apenas como modelo de “desenvolvimento” na conciliação de classes, mas também como modelo político, como referência capaz de reaglutinar um novo processo de enfrentamento e transformação.
Independentemente da seletividade das operações dirigidas pelo Judiciário e pela Polícia Federal contra o governo do PT e contra Lula no último ano, da comprovação ou não das novas e pesadas denúncias nas delações da Odebrecht, o fato é que o lulopetismo enquadrou-se, envolveu-se, operou e foi um protagonista de primeira ordem no corrupto modus operandi da Nova República. Sua cúpula, Lula incluído, fez e faz parte desta ordem que desmorona aos nossos olhos.
O nosso lugar será outro
Não é menor a nossa responsabilidade, enquanto parte da esquerda socialista e tendo o PSOL como a sua principal ferramenta partidária, em apresentar à sociedade outra visão, outro programa para o Brasil, outro projeto de poder.
Em termos bem práticos, de imediato, trata-se de prestar o máximo de apoio militante à greve geral de 28 de abril contra as reformas e levantado também a bandeira de “Fora Temer” e “Diretas já!”
E dado a dimensão da crise, se esse Congresso insistir a essas alturas em votar reformas sem qualquer processo de consulta popular, é pertinente o debate sobre a bandeira de novas e antecipadas eleições gerais também para o Congresso Nacional.
E, seja nas eleições de 2018 ou no cenário de evolução da crise para sua antecipação, teremos o desafio de reaglutinar a esquerda com um programa para encarar de frente a direita e suas alternativas, a fim de superar o modelo de conciliação de classes do lulismo.
Tal projeto precisará incluir uma outra visão de poder, que combata as tentativas de saídas autoritárias para o sistema político. Nosso critério deve ser o de mais democracia e não menos, mas não uma democracia cooptada e corrompida como a de hoje, uma radical democracia cujo conceito e vetor principal sejam a participação popular e seus mecanismos de democracia direta.
Precisamos de uma democracia participativa e deliberativa com plebiscitos e consultas populares permanentes, democratização dos meios de comunicação, fim definitivo de qualquer financiamento privado de campanha, revogabilidade de mandatos, democratização do Poder Judiciário, entre outras questões ou propostas que precisamos debater.
Estamos no meio de um terremoto político que deve ser enfrentado da forma mais coletiva possível, buscando a interação e diálogo com o maior leque possível de atores sociais, dispostos a construir outro projeto diante deste sistema que agoniza.