por Urariano Mota
Em um trecho do Dicionário Amoroso do Recife, escrevi:
“José Amaro Correia, Zé Amaro, ou Mário Sapo, como o chamamos, era e continua a ser um socialista, militante político, preso em 1973 no DOI-CODI no Recife…
Quando eu lhe pergunto se depois de tanta luta, se alguma vez ele não pensou em desistir, ele, que sei estar com problemas circulatórios, pressão alta, e que piora todas as vezes em que se emociona, ele me responde:
— Desistir? Nunca! Às vezes me dá uma preguiça. Mas dá e passa.
Então ele me conduz, tateante, devagar, até o portão. Às vezes vira a cabeça de lado para ver o meu vulto, quem sabe, algum traço. Talvez não veja mais nem sequer a minha sombra. E não diz. Mas entendo. Devo ser mais real que o seu sonho, que um dia ele escreveu num poema:
‘Vivo semeando o sonho
Do fim da pobreza
De todas as crianças terem o direito
De brincar e sorrir
Vivo a semear o sonho
Do nascer igual
Perante a natureza dos homens’.
Depois, em 2014, completamente cego, em uma cadeira de rodas, ele me deu a notícia de que o seu jornal, O Bocão, havia sido impresso em braile. Naquela altura, aos 71 anos, em lugar de se maldizer, mais uma vez ele fazia do próprio sofrer, da cegueira, um serviço. No telefone, eu lhe disse:
— Mário, você quando cai, cai para cima.
A essa observação escutei uma risada. Ele não precisava falar. Eu sabia que ele estava feliz, como podia estar um jornalista popular, guerreiro. Cego, sem uma perna e livre”.
Em 2017, em 27 de julho à noite, ele faleceu aos 74 anos de idade. Estava com a saúde ao fim em tudo. Infecção nos pulmões, nos rins, no coração. Quando o visitei na UTI, embora ele estivesse inconsciente, eu lhe disse na esperança de que me ouvisse:
– Você é meu irmão. Você sabe: não te faltei antes na ditadura, não vou te faltar agora.
Mas aqui vem o segredo de uma revelação: na quarta-feira 26 de julho, quando o ônibus parou próximo ao hospital onde ele estava internado, subiu um grupo de três jovens que, antes de começarem a pedir ajuda, começaram a cantar um rap. Um rap da liberdade.
Eu fiquei comovido até os olhos, porque pensava: “o meu amigo no fim e estes jovens cantando a liberdade”. Era como a encarnação viva do meu próximo romance, “A mais longa duração da juventude”. Eu me dizia: cantam para ele. E me vieram associadas as palavras de John Donne:
“Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo… a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.
Então os jovens cantavam para o meu amigo Mário Sapo, eu os compreendia muito bem. Cantavam e tocavam pelos guerreiros. Então eu nunca tinha ouvido um rap tão emocionado. E pensei também no Toni, da LiteraRua, na editora do meu próximo romance. E volta agora a apresentação que José Carlos Ruy escreveu para o romance, no trecho:
“O tempo funde as duas pontas do relato, entre o passado e o presente… Sonho de abnegação, igualdade, de liberdade, de justiça para todos, de desapego perante os bens materiais e construção de um mundo novo, socialista. ‘Eu não sou um velho. Aliás, nós não somos velhos’, diz um diálogo neste livro maravilhoso. ‘Eu sei. O tesão de mudar o mundo continua’. O viço e o vigor do sonho permanecem”.
Aquele canto no ônibus, a sua associação ao amigo que padecia não era delírio. Era fato. Os jovens cantavam um rap que se unia ao amigo, na mais longa duração da juventude. Então eu os aplaudi com entusiasmo, como quem grita: presente! um guerreiro cai, outro se levanta. Esses jovens com violão, percussão e canto levam adiante a resistência. Eles são inconformados com o mundo, razão maior de viver.
Com o falecimento de José Amaro Correia veio um breve abatimento. Mas não temos esse direito. Não podemos cair e esmorecer. É levantar a cabeça e continuar a caminhada. Se possível, até o lado ensolarado da rua.