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Bijuteria, a joia da crise

Por que num tempo de crise, o fascínio pelo supérfluo ganha tanta prioridade quanto o essencial, a vaidade sendo saciada, ainda que isso corresponda ao empobrecimento da mesa?  A crise superlotou as ruas das grandes capitais brasileiras com camelôs que vendem de tudo ou quase tudo, desde relógios digitais (o tempo descartável) a inúmeras formas de utensílios e quinquilharias, consolidando o “salve-se quem puder” da geração do trabalho precário.

Tendências esteticistas, com matriz na precariedade, tendem a vicejar nos períodos de grandes depressões econômicas, num paradoxo estonteante. Há alguns anos as bijuterias vêm multiplicando-se em tipos e modelos, nas barracas ou mostruários, com incontável variedade de brincos, braceletes, berloques, numa oferta cuja resposta é dada pelas mulheres com avidez sintomática e excessiva.

Como a coisa anda feia, as mulheres passaram a se enfeitar como nunca. Ruas, avenidas, praças, bancos, lojas, escritórios, corredores de instituições políticas ou culturais, tornaram-se verdadeiras passarelas saturadas de “gatas”, “tigresas”, “panteras”, realistas e sonhadoras, trabalhando, consumindo ou circulando com adornos de formas abstratas, cores apelativas e materiais – latão, cobre, chifre, alpaca, madeira, penas de aves, grafite, acrílico e mesmo o plástico – isolados ou numa orgia combinatória.

31 de março bijuteria crise financeira

Em suas mil e umas formas, as bijuterias chamam a atenção para si mesmas erigindo uma sintaxe (modo de ordenar, por em relação, combinar) autônoma que, na maioria dos casos, dispensa qualquer “diálogo” ou nexo convencional com a roupa, o calçado, ou acessórios como bolsa ou cinto. Em muitos casos, substitui até a maquiagem, num arrojo demarcado pelo exagero e pela provocação. Algo como a penúria exacerbando a estética.

Vidrilhos no olhar. Vidrilhos de quinta categoria. Formas que extrapolam supostas fronteiras artísticas para ocupar um mesmo universo de abstrações entre o bárbaro, o barroco, os arranjos florais e o design ultramoderno. No território dessa moda não há nostalgia, mas é uma diluição da arte dos designers de joias o que está inscrito na morfologia das bijuterias.

Submetidas à proliferação dos assaltos, as joias – primas nobres das bijuterias – têm sido, cada vez mais, proscritas do cotidiano, confinadas à noite; às situações solenes, ambientes fechados, para brilharem sob a refração de luzes artificiais e serem retiradas nas suítes ou no motel. Cordões de ouro, colares, pulseiras e anéis de prata, marfim, pérola ou diamante, ao mesmo tempo em que funcionam como algo estático, tendem a insinuar zonas de atração no corpo feminino.

O que ressalta primeiro é a própria joia, sua presença maciça ou delicada, só depois a possível oposição entre a dureza do material e a maciez do corpo, a perenidade dos materiais sendo transcendida pela classe das usuárias (de ascendência aristocrática), num ritual de sedução que pede para ser violado, apela para a tatilidade, enroscando ou tornando fugidios os olhares.

Para Dante, autor de A Divina Comédia, “ser percebido é mais humano que perceber”. Já a bijuteria se insere em um regime solar no palco do cotidiano. E se as mulheres adentram a noite com seus brincos de plástico, carregam também consigo o dia-a-dia.

Esse ramo da ourivesaria não ostenta qualquer referência imediata com os materiais nobres, converteu-se numa simulação em estado puro, garantindo uma ordem autônoma, mas mantendo a oposição à joia, no que tange seu reduzido valor e sua banalidade.

Se com a joia é a sexualidade que transita à flor da pele, com a bijuteria é uma erotização do cotidiano (ou dos corpos no cotidiano) o que se vislumbra. No flerte incessante das avenidas ou no interior dos shopping centers, olhares transeuntes eclipsam paixões fantasiosas, num jogo rápido que encena casualidades de relações amorosas. Microromances atravessam o cotidiano, ancorando apelos e respostas que se dissipam na velocidade das multidões, para renovarem-se alguns passos adiante.

A bijuteria erige um teatro de seduções aleatórias. O consumo ostentatório espreita nos múltiplos espelhos do narcisismo feminino com a oferta do melhor visual.  A herança ornamental, o legado decorativo, justifica o atributo cultuado pela mulher que, segundo algumas interpretações psicanalíticas, corresponderia a uma lisonja ao reflexo narcísico do homem – cujo núcleo reside, por excelência, no falo.

Como as crises precipitam o declínio da imagem fálica, ou do prestígio fálico, a sedução feminina emerge como o dado capaz de revitalizá-lo, garantir a sua reereção.

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