por Tatiana Roque e Mariana Patrício
É comum ouvirmos que os manifestantes de Junho de 2013 não tinham pautas. Teria sido uma recusa em bloco ao sistema político, abrindo caminho para a crise de representação que estamos vivendo. Claro que Junho foi muita coisa, e as análises ainda dependem da geografia dos protestos. O Rio de Janeiro, talvez pela presença importante das obras da Copa e dos Jogos Olímpicos, é paradigmático de temas-chave abordados nas ruas.
Em primeiro lugar, as grandes passeatas de Junho apontavam de modo unânime Sérgio Cabral como símbolo da insatisfação. Nenhum outro grito contra políticos era capaz de unir os manifestantes a não ser aqueles que se insurgiam contra Cabral. O governo federal era lembrado de modo vago e esparso, apenas na medida em que era aliado do PMDB no estado do Rio de Janeiro. O slogan “Não vai ter Copa” precisa ser entendido nesse contexto.
Muita gente se sentia excluída do projeto hegemônico naquele momento, um projeto de crescimento sem povo, reforçado por conluios oligárquicos que atropelavam, literalmente, as casas das pessoas (como na Vila Autódromo). A insatisfação, contudo, não significava uma rejeição em bloco do que tinham sido as políticas dos governos petistas até ali. Bem pelo contrário, é possível dizer que Junho de 2013 foi um movimento por “mais”: mais serviços públicos de qualidade, mais mobilidade, mais direitos, mais participação, mais ações contra nossas desigualdades históricas.
Era essa a reivindicação implícita nos gritos por “saúde e educação padrão FIFA”. O movimento de jovens que se organizou por uma CPI dos transportes, chegando a ocupar a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, identificava precisamente o problema da caixa preta dos ônibus, em grande parte controlados pela máfia de Jacob Barata em conluio com diferentes governantes fluminenses.
A vontade de exercer o protagonismo na pesquisa dos dados dos transportes públicos e a identificação da concentração de poder em torno desse nome deram origem ao Casamento da Dona Baratinha, protesto performático em frente ao Copacabana Palace, onde a filha de Barata se casou.
As políticas dos primeiros governos Lula – em escala macro, mas também micro – tiveram efeito expressivo na produção de novos atores sociais e políticos. São exemplos: organizações autônomas da juventude, grupos culturais, coletivos de mídia e movimentos negros e de mulheres. Universidades mais democráticas exerceram um papel importante na politização dos jovens, pois fizeram emergir forças intelectuais constituintes de uma nova geração política.
Ao inserir grande parcela da população nas relações produtivas que integram a sociedade do conhecimento, a democratização da universidade teve efeitos positivos além dos esperados. Outras medidas específicas, como os pontos de cultura, também agiram nesse processo. A participação na produção de cultura e o ingresso no ensino superior, somadas às transferências de renda, abriam a possibilidade para novas posições subjetivas. Isso tudo tornava as pessoas capazes de pedir mais e trazia à cena novas possibilidades de contestação.
Diante disso, é bastante surpreendente que quadros do próprio PT associem Junho de 2013 a um movimento de direita, dado que foi um produto positivo das políticas petistas. Fernando Haddad, por exemplo, em texto recente na revista Piauí, pergunta: “como explicar a explosão de descontentamento ocorrida em Junho daquele ano (…) O desemprego estava num patamar ainda baixo; a inflação, embora pressionada, encontrava-se em nível suportável e corria abaixo dos reajustes salariais; os serviços públicos continuavam em expansão, e os direitos previstos na Constituição seguiam se ampliando”.
Parte-se da premissa de que as pessoas só vão às ruas quando estão em má situação econômica. Pensamos o contrário. A estabilidade econômica, somada à inclusão de jovens urbanos em esferas antes restritas à elite e ao acesso a bens culturais, tornava as pessoas mais potentes, “empoderadas”, logo, em medida de pedir mais. Por outro lado, os protestos marcavam o esgotamento de um tipo de adesão ao projeto de desenvolvimento em curso. Parte do aparelho petista, em sua deriva burocrática, perdeu a dimensão de que politização tem a ver com aumentar a capacidade e a autonomia das pessoas comuns.
No livro Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-80, Eder Sader descreve os novos personagens que entraram em cena. Na época, eles acabaram se organizando no partido-movimento que foi o Partido dos Trabalhadores. Em 2013, esse partido não conseguiu entender quem eram aquelas novas personagens.
Não teria sido difícil, em diferentes esferas de governo, convocar os sujeitos sociais e políticos emergentes para formular políticas voltadas para setores determinados. Só para dar alguns exemplos: alternativas de comunicação capazes de compreender as dinâmicas das redes sociais e produzir maior participação; políticas públicas em diferentes áreas discutidas em fóruns nacionais já existentes; expansão da experiência dos pontos de cultura para outras áreas como processo formativo da juventude periférica; políticas para a educação básica, formação de professores ou produção de material didático, em articulação orgânica com as universidades e os institutos federais; mudança de nossa matriz energética. Em 2014, começa a haver um descompasso entre as novas personagens que surgiram das políticas petistas e o paradigma produtivo então em vigor.
Exemplo emblemático dessa nova dinâmica, em torno de outros personagens que emprestavam pela primeira vez seus corpos à ação política, se passou em uma noite fria de julho de 2013, no bairro do Leblon, um dos mais chiques e elitizados da cidade. Jovens militantes de Junho, oriundos de vários outros bairros, ocuparam a rua do prédio em que morava Sérgio Cabral. Foi dali que vimos chegar uma passeata de moradores das favelas do Vidigal e da Rocinha, vindo se juntar ao Ocupa Cabral, denunciando o desaparecimento de Amarildo, morador da Rocinha, que acabava de ser assassinado pela polícia. Começava a ressoar, em diversos cantos da cidade, a pergunta que não podia mais calar: “Onde está o Amarildo?” Todo mundo sabia que Amarildo estava morto, assassinado pela mesma polícia que batia nos manifestantes.
Mas não era uma pergunta retórica. Era uma mudança na relação entre visibilidade e invisibilidade que determina a fronteira entre asfalto e favela no Rio de Janeiro. Tudo o que se passa no Leblon vira notícia (ou novela). As vidas arrancadas nas favelas ganham linhas frias no jornal, em geral culpabilizando as vítimas ou mencionando o caos no trânsito. Naquela noite, porém, os moradores da favela chegavam com sua insistência, recebidos pela brecha que o Ocupa Cabral abria pela ação dos jovens que, um mês antes, tinham ajudado a fazer as ruas de Junho. Naquela mesma noite, parte dos manifestantes decidiu protestar em frente à casa do Secretário de Segurança do Estado, José Mariano Beltrame.
Perguntar incessantemente por Amarildo é resistir ao silenciamento das subjetividades políticas que a necropolítica brasileira não cessa de produzir, como modo de inviabilizar o processo democrático em curso nos últimos anos. Na contramão desse projeto de extermínio, essas novas personagens demandam cada vez mais participação política, intervindo inclusive na esfera da representação. Se a onda conservadora se fez presente em 2015, outras vozes com timbres bem diversos também se fizeram ouvir com força.
Em novembro desse mesmo ano, milhares de mulheres ocuparam as ruas do país para impedir que o PL 5069/2013, de autoria do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, fosse aprovado. O projeto de lei visava dificultar o atendimento de mulheres em caso de estupro, além de criminalizar profissionais de saúde que prestassem auxílio às mulheres no SUS. Para além da histórica luta feminista de respeito ao corpo das mulheres, insurgir-se contra Eduardo Cunha representava muita coisa.
Em síntese, pode-se dizer que o que estava em jogo era a afirmação da nossa existência plena, não abrindo mão do direito de participar das decisões que teriam impacto sobre as nossas vidas – sejam essas decisões de ordem subjetiva, econômica ou política. Lembrando que as manifestações de rua surgem no mesmo período em que invadem as redes sociais as campanhas virtuais de denúncias de assédio e de machismo cotidiano que muitas de nós sofremos ao longo da vida. Apontar Eduardo Cunha como inimigo das mulheres era também questionar o modo chantagista como o presidente da Câmara negociava as votações dos projetos de lei no plenário, e a lógica intrínseca que permite esse tipo de governabilidade, representando os interesses apenas de uma pequena parcela da população, depondo inclusive a presidente eleita.
Outros modos de governar, mais democráticos, se fazem urgentes. Foi com essa premissa que as mulheres cariocas elegeram Marielle Franco com mais de 46 mil votos nas eleições de 2016. A eleição de Marielle foi – e ainda é – a afirmação do desejo de encontrar outros modos de fazer política. Seu assassinato mostra, contudo, o quanto ainda é difícil atravessar as barreiras do poder, da polícia e da milícia que caracterizam o cenário do Rio de Janeiro.
Nos cinco anos que separam os assassinatos de Amarildo e de Marielle, algumas coisas mudaram, outras não. Marielle era vereadora, com enorme votação, e porta-voz de uma geração das novas personagens que chegaram à universidade e ao poder político. Simbolizava a renovação da política tão desejada pelas ruas de Junho de 2013. Cinco anos depois do grito “Onde está o Amarildo?”, ainda queremos saber: “Quem mandou matar Marielle?”.
A batalha não terminou e continua tendo que se dar em duas frentes: resistência e representação. Para que a potência das ruas possa ocupar a política, é preciso insistir nas perguntas que apontem para o aprofundamento de nossa frágil democracia, fazê-las ecoar, produzindo novos destinos.
Tatiana Roque é professora da UFRJ e ativista, participou dos protestos de 2013 e desde então vem pensando em seus desdobramentos.
Mariana Patrício é professora de literatura no CCE Puc-Rio e articuladora do movimento Mulheres Contra Cunha. Ambas são coeditoras da revista feminista DR.
Publicado originalmente no Correio da Cidadania.
A hora de Dilma