A Rússia sempre guerreou para expandir seu império. Em meados do século XIX, a Rússia guerreou contra as tribos muçulmanas da Tchetchênia e do Afeganistão.
O escritor genial, Lev Tolstói, tomou os últimos vinte anos de sua vida para escrever o romance Khaddji-Murát, baseado em memórias de sua juventude como oficial do exército czarista.
Quando, aos 82 anos, ele abandonou de vez a casa familiar em Polyana, carregava consigo mais de duas mil páginas, e dentre elas o original de sua colossal novela ainda inconclusa.
Enquanto a inspiração advinha de memórias, seus propósitos eram descortinar na alma humana tudo o que ela tem de digno e de covarde, de honrado e de abjeto. Tudo aquilo que se descortina, se expande numa guerra!
Nesse sentido, Khaddji-Murát talvez seja´, ao alvorecer do século XX, o mais claro berro de horror contra o despotismo e a guerra posto na literatura!
A personagem Maria Dmitrievna, esposa de um major russo, assim se expressa a respeito dos bravos oficiais czaristas: “Vocês são assassinos, não os suporto, uns verdadeiros assassinos. Não me venham dizer que os massacres sejam coisas da guerra, vocês são assassinos e é tudo”.
Existem diferenças significativas entre o fanatismo religioso, sectário, tribal, que propaga violência, vinganças, intolerância e o ateísmo real, travestido de religiosidade oficial, que incendeia aldeias, mata população civil, regurgitando o bafo das vodcas ingeridas?
A resposta para Tolstói é sim e não, ou seja, a responsabilidade maior pelas desumanidades da guerra é do invasor, daquele que queria impor o poder despótico do czar. Os tribais reagem e aglutinam a violência sectária, inclusive contra seu próprio povo. Também eles se desumanizam na guerra. Todos se desumanizam!
Khadii-Murát existiu como personalidade histórica. Foi um guerrilheiro separatista bem-sucedido e famoso, que abandonou a luta e mudou-se para o lado dos invasores russos na esperança de salvar sua família, que fora sequestrada pelo líder tchetcheno rival.
Além de salvar sua família, Murát queria também vingar as mortes dos membros de sua tribo leais a ele, assassinatos perpetrados por Shamil, o comandante dos guerrilheiros muçulmanos do Cáucaso.
Ao juntar-se aos russos no desespero pessoal, ele trai seu povo, que, por sua vez, já o traíra também. Mas, ao final, buscará sua libertação e será assassinado pelo exército russo.
Sobre o herói de seu livro escreve Tolstói:
“Khaddji-Murát defende a vida até o fim; sozinho no meio de um vasto campo, mas mesmo assim ele a defendeu.”
Surpreendemo-nos durante toda a leitura com o preciosismo narrativo. Comentando a última obra de Tolstói, disse Máximo Gorki: “Como o velho escreveu bem! ”
A princípio, o narrador encontra dois pés de bardanas (espécie de planta medicinal). O primeiro é vermelho, colorido e muito espinhoso, então ele o evita. O segundo, ele o deseja desesperadamente, mas tentando arrancá-lo, o destrói. O mesmo se passará com o herói e o anti-herói muçulmano, “com que tenacidade ele se defendeu e como vendeu caro a vida”.
A narrativa nos conduz ao respeito pelos regionalismos, assim como pelas idiossincrasias de cada povo. Como Tolstói dizia: “para cantar num tom que seja internacional, cante primeiro naquele de sua aldeia”.
Os países caucasianos e afegãos tinham uma cultura totalmente diferente e quase paradigmática em relação a dos russos, exceto na própria violência que ambas engendram. “Para cada povo são bons os seus próprios costumes”.
Não existe exagero em considerar que o personagem Khaddji-Murát se associa aos dons proféticos do Profeta Jeremias, de Michelangelo, que baixa a cabeça e se remói em tormentos ao prever o que o destino reserva à humanidade, a sua humanidade, a sua gente dominada pelos imperialistas russos. de um lado. e. pelo tribalismo impiedoso. de outro .
O asceticismo quase monástico de Khadii-Murát contrasta com a devassidão da vida dos soldados russos na sua banalidade e na falta de sentido. Ele tenta separar-se de todos os lados em luta, de suas torpezas e tibiezas, símbolos do desprezo do homem pelo seu semelhante.
Ele sabe que a coragem somente é verdadeira quando não é fruto do álcool ou da soberba, quando exercida por alguém que, de certa forma, situa-se acima do bem e do mal.
A rendição de Khaddji-Murát ao príncipe russo e general Vorontzov é um ato de peça teatral, em que os papéis dissimulam a realidade:
“Os olhos daqueles dois homens se encontraram e disseram um ao outro muita coisa inexprimível por palavras e algo bem diferente do que dizia o intérprete. Diretamente, sem palavras, exprimiam mutuamente toda a verdade: os olhos de Vorontzov diziam que ele não acreditava em uma só palavra do que dizia Khaddji-Murát e que sabia ser esse homem um inimigo de tudo o que era russo, que assim permaneceria, e que se submetia agora era por ter sido obrigado a tal passo. Khaddji-Murát compreendia isto e, apesar de tudo, reafirmava a sua fidelidade.”
Com relação ao invasor russo, Tolstói centra-se não somente na brutalidade dos soldados e seus oficiais, mas trata de decompor o papel de quem comanda uma sociedade perversa, o czar:
“Por mais habituado que estivesse Nicolau (I) com o terror que despertava nas pessoas, este lhe era sempre agradável, e ele gostava, às vezes, de deixar espantado o súdito a quem infundira tal sentimento, dirigindo-lhe, por contraste, palavras afáveis”.
O czar acreditava que, se por um lado, roubar era inerente aos funcionários públicos, por outro, a obrigação dele era castigá-los. A lisonja permanente, asquerosa e sem rebuços, dos que o cercavam, reduzira-o a tal estado em que não via suas contradições.
“Mesmo quando condenava alguém a mil bastonadas, sendo que com menos de quinhentas quaisquer morreria, agradava-lhe ser inexoravelmente cruel e, ao mesmo tempo, saber que, entre nós, não existia a pena de morte”.
No outro lado, quando após num avanço de tropas russas uma vila inteira era destruída, os velhos muçulmanos se reuniram. Ninguém falava sequer em ódio ao invasor. O sentimento que experimentavam todos os tchetchenos era mais forte que o ódio.
“Não odiavam, mas não reconheciam como gente aqueles cães russos”.
“Era uma sensação de asco e estupefação ante a crueldade absurda daquelas criaturas, e o desejo de destruí-las, a exemplo do desejo de destruir os ratos, as aranhas venenosas e os lobos, era um sentimento natural, como um instinto de conservação”.
Os habitantes das aldeias tchetchenas não tinham alternativa: permanecer nos próprios lugares e reconstruir, com um esforço tremendo, tudo o que fora realizado e destruído tão fácil e inutilmente, ou contrariando a lei religiosa e o sentimento de repulsa e desprezo pelos russos, submeter-se a eles.
“Secar-se-á a terra de minha sepultura e hás de esquecer-me, minha mãe! A erva dos túmulos há de crescer no cemitério, abafará o teu desgosto, meu velho pai. As lágrimas secarão nos olhos de minha irmã, e o sofrimento fugirá de seu coração”.
Ao ódio ao imperialista invasor, a resposta é a vingança!
“Mas não me esquecerás, meu irmão mais velho, enquanto não vingares minha morte. E não me esquecerás também, meu segundo irmão, enquanto não te deitares a meu lado. ” “És quente, ó bala, e carregas a morte, mas não foste tu a minha escrava fiel? Hás de cobrir, ó terra negra, mas não era eu quem te pisava com as patas de meu cavalo? És fria, ó morte, mas eu fui teu senhor. A terra tomará meu corpo, o céu receberá minha alma”.
Quando Khaddji-Murát é ferido de morte, as recordações de combates, do príncipe, da mulher, dos filhos, sucediam-se velozes, sem despertar nele nenhum sentimento, quer de comiseração, quer de rancor, nem desejo nenhum. Tudo isso parecia tão insignificante em comparação com o que começava ou já havia começado para ele!
“E foi esta morte que a bardana esmagada, em meio ao campo lavrado, me fez relembrar”, conclui Tolstoi.
E este grito poderoso pela paz e contra as guerras imperialistas ecoa hoje com a máxima altura! Imortal Lev Tolstói!