Zona Curva

Alguns diagnósticos sobre a PEC 241

por Pablo Ortellado

O texto reflete mais ou menos o que sei e penso sobre a PEC 241, que vai congelar os gastos do Estado brasileiro por 20 anos.

Para começar, apresento a maneira como entendo os argumentos de quem defende a proposta: para eles, há no Brasil um desequilíbrio fiscal estrutural (isto é, se gasta estruturalmente mais do que se arrecada), com aumentos crescentes da dívida pública – movimento que precisa ser contido e revertido por meio de medidas duras, diluídas num período longo de tempo (20 anos).

Embora dolorosas, pois reduzirão significativamente os gastos sociais do Estado, essas medidas serão compensadas pelos seus impactos positivos imediatos já que, ao resgatar a confiança dos investidores, elas vão gerar crescimento econômico, diminuição do desemprego e redução dos juros. Não agir assim, para os defensores da PEC, seria demagogia perigosa num momento de grave crise e nos levaria ainda mais para o fundo do poço.

O que me parece errado, tanto no diagnóstico, como nas soluções propostas:

1) ainda que tivéssemos um desequilíbrio fiscal da natureza alegada pelos defensores da PEC, a solução não poderia ser um corte radical e horizontal dos gastos do Estado, mas cortar pontualmente gastos que beneficiam setores mais privilegiados (desonerações e altos salários, por exemplo) e aumentar a arrecadação, fazendo com que os brasileiros mais ricos paguem a sua parte no financiamento do Estado.

Poderíamos transformar o vício em virtude, olhando para a nossa estrutura tributária regressiva – isto é, para o fato de os ricos pagarem bem menos impostos do que os pobres – como uma oportunidade de fazer a arrecadação crescer em momento de crise. Isso teria a vantagem de não mexer no que a imensa maioria paga de impostos;

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2) haverá quase seguramente redução significativa dos gastos em saúde e educação. Atualmente os gastos em saúde e educação são vinculados, isto é, uma parcela do que o Estado arrecada com impostos é automaticamente repassada para saúde e educação, de maneira que, à medida que o país cresce, também crescem os recursos disponíveis para os serviços públicos. Esse sistema vai ser extinto com a PEC e os gastos totais do Estado não vão mais poder crescer. Como os outros gastos não poderão ser cortados (a maior parte deles são gastos com assistência social e previdência), a tendência é que a distribuição fique mais ou menos como está e os gastos com saúde e educação se reduzam muito, em relação ao PIB.

Saber exatamente quanto é um exercício de futurologia, porque não sabemos quanto o Brasil vai crescer, nem como vai se comportar a inflação. Mas todas as simulações sérias que eu vi (os estudos do IPEA, do DIEESE e da minha colega Úrsula Peres), que utilizam expectativas padrões de mercado ou aplicam a regra da economia brasileira do passado, mostram redução muito drástica dos recursos necessários à saúde e educação;

3) existem pelo menos três grandes malandragens na PEC. Ela é uma obra de gênio. A primeira malandragem é semântica – dizer que não há cortes de gastos em saúde e educação, mas apenas a suspensão dos novos aportes. Não se tira recursos, simplesmente se deixa de colocar. Atualmente, os gastos são vinculados e crescem com a arrecadação. A partir da nova regra, estariam congelados. No decorrer dos 20 anos, um verdadeiro abismo separa o que seria gasto com saúde e educação na regra dos gastos vinculados e o que passaria a ser gasto com os gastos congelados. Nas simulações, essa diferença é uma redução de 40%;

4) a segunda malandragem é dizer que nada impede que os gastos em saúde e educação continuem crescendo, desde que o teto seja respeitado. Esse argumento só pode ser enunciado com má fé. O próprio governo Temer foi incapaz de distribuir desigualmente o ônus da crise, pesando mais sobre os mais privilegiados – pelo contrário, ele deu aumento para os servidores mais ricos e manteve todas as muito criticadas desonerações às empresas do governo Dilma. Esperar que os gastos em saúde e educação cresçam, vencendo a ação desses poderosos lobbies, se não for má fé, é apenas ingenuidade. E é de uma insensibilidade social sem par esperar que os gastos em saúde e educação cresçam às custas da redução dos gastos em assistência social (como o seguro-desemprego e o Bolsa-Família);

5) a terceira malandragem é diluir essa desconstrução dos serviços públicos em longos 20 anos. Isso tem duas vantagens para os proponentes: a primeira é que praticamente nada acontece sob o governo Temer, que poderá sobreviver ileso, já que nenhum dos cortes serão sentidos até o fim do seu mandato; o segundo é que os efeitos mais terríveis vão ser sentidos aos poucos e a barra pesada só será sentida nos anos 2020, 2030, quando nossa população estiver envelhecida, demandando mais o SUS e os recursos estiverem congelados no estágio atual;

6) como se não bastasse ser equivocada no conteúdo, a medida é um despropósito na forma. Ela está tramitando de maneira aceleradíssima, patrocinada por um governo que não submeteu tal programa ao crivo das urnas. Não foram feitas audiências públicas, os jornais não investiram no debate público e a maioria dos brasileiros simplesmente não tem ideia de que está em discussão – e esse desconhecimento não é por acaso: se o debate fosse realizado, o Brasil jamais aceitaria a medida, porque um sistema sólido de educação e saúde é um dos poucos consensos deste país tão dividido;

Foram necessários 30 anos para construir nosso sistema público de saúde e para ampliar e consolidar nossa educação pública. Tudo, agora, corre o risco de ser desconstruído com um projeto que está sendo aprovado sem debate e que deve ter um tempo total de tramitação de apenas dois meses!

7) por fim, gostaria de enfatizar que embora envolvida em questões técnicas, essa é uma questão inteiramente política. Se temos mesmo um desajuste fiscal, temos que fazer um debate público sobre como resolvê-lo: se aumentamos a arrecadação sobre quem não paga imposto ou se cortamos gastos e onde cortamos os gastos. O governo Temer faz dois movimentos antidemocráticos:

a) ele envolve o debate em terminologia técnica, para que seja literalmente incompreensível pelo público, mesmo pelo público com alta escolaridade;

b) trata a opção que fez, de reduzir os serviços públicos, como se fosse uma inevitável reação administrativa à crise, e não uma escolha política de enfrentar a crise penalizando os usuários do sistema público, poupando os mais ricos que não pagam impostos e poupando os credores da dívida pública.

Estou muito persuadido de que a medida é um verdadeiro ataque aos direitos da cidadania e que merece ser enfrentada com uma mobilização no limite das nossas forças.

Essa PEC é de fato uma #PECdoFimDoMundo e, contra ela, só há uma saída: #RuaNeles.

Publicado originalmente no Correio da Cidadania.

A PEC 241 é ponte para a dor

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