Retrospectiva 2021 – O ano que passou, no Brasil, foi um tempo de terror. E não foi só por conta do coronavírus, visto que o andamento da vacinação, ainda que lento, foi baixando os casos e as mortes. Apesar de todo o trabalho que o governo federal fez para impedir a imunização massiva da população, mesmo entre os apoiadores do governo, o chamado da vida foi mais forte e as pessoas foram buscando a vacina.
Isso deu um respiro para a nação uma vez que o combate ao novo vírus só pode ser feito com a imunização coletiva da maioria da população. Ainda assim, nada está bem. As mortes continuam – passamos dos 600 mil óbitos – e o negacionismo também, a tal ponto de o presidente da nação insistir em criticar a imunização em crianças, tão logo a Anvisa liberou, mesmo que os dados apontem que grande parte dos internados nas UTIs são jovens não vacinados. E, agora, no final do ano, hackers invadiram o sítio do Ministério da Saúde e apagaram dados sobre a vacinação e sobre a saúde dos brasileiros. Um “mistério” do realismo mágico. A quem interessaria destruir as informações sobre esse tema? Um pirulito para quem adivinhar.
A maior taxa de terror veio mesmo por parte do governo federal, como tem sido recorrente desde 2019, quando assumiu o país esse agente da morte. Cumprindo suas promessas de campanha, Jair Bolsonaro deu sequência ao processo de destruição do país em todas as áreas. Não houve engano, tudo já estava claro desde o começo. Mas, a responsabilidade dessa destruição não é unicamente do presidente. O Congresso Nacional, com raríssimas exceções dentro dele, tem respaldado cada ação e cada proposta do governo federal. Destruíram direitos dos trabalhadores e abriram os cofres para o desmando e a corrupção. Não bastasse isso ainda aprovaram um tal de “orçamento secreto”, que não dá transparência sobre recursos federais entregues aos deputados. Uma vergonha nacional que é noticiada como se nada tivesse de absurdo.
Em 2021, seguiu forte e sem parada o ataque aos povos originários, com o aumento sistemático da violência e do roubo das terras. A proposta do governo é acabar com eles. Incêndios e desmatamentos arrasando territórios inteiros e nossos biomas mais importantes. Igualmente recrudesceram os ataques da polícia militar, em praticamente todos os estados, contra a população negra e pobre. O extermínio da juventude virou política de estado, a ponto de acontecer um massacre com 26 mortos em Minas Gerais, sem que o tema rendesse qualquer debate nacional. Até hoje não se sabe o que de fato aconteceu na cidade mineira de Varginha. Nada além da acusação de “suspeitos” e “bandidos”. Provas de bandidagem? Nenhuma.
O governo também continuou com o processo de desmonte na educação brasileira, retirando recursos de todos os níveis. A pandemia e a falta de uma política de acesso fizeram com que aumentasse o número de desistências, a taxa de analfabetismo encostou nos 7% e o analfabetismo funcional chega a quase 30% da população. Não bastasse isso, o negacionismo diante do coronavírus fez com que vários estados obrigassem os professores ao retorno presencial, gerando sofrimento mental e mais doença na categoria.
O governo federal também estraçalhou com o Enem – porta de entrada para a universidade dos empobrecidos – a tal ponto de fazer com que a juventude da periferia desistisse dele, bem como do ensino superior, com redução de inscrição no vestibular. E, agora, quer garantir mais vantagens para os ricos no sistema do Prouni (programa de bolsas para garantir permanência) afastando ainda mais os empobrecidos da universidade, já que disputarão as já poucas bolsas com quem não precisa delas.
No campo da saúde assistimos aparvalhados a CPI da Covid no Congresso Nacional que levantou não apenas os crimes cometidos por agentes do governo, bem como pelo próprio presidente da nação, além dos horrores que acontecem dentro dos hospitais privados geridos por planos de saúde, que simplesmente mataram os velhos com medicamentos inúteis para evitar gastos. Meses e meses de apresentação de provas e testemunhos sobre esses desmandos que, ao fim, deram em nada. Um ano inteiro sangrando sem que nem a Justiça nem os parlamentares fizessem qualquer coisa para punir os criminosos. Muito provavelmente tudo isso acabará em pizza ou arrastará processo por anos, que se findarão por inanição. O drama de milhões nas mãos dos bandidos tampouco conseguiu produzir qualquer comoção popular, além da sensação momentânea de estupor.
Vivemos um crescendo do preço da gasolina – com mais de 50% de aumento no ano – causando a alta dos preços de todas as mercadorias, inclusive as da cesta básica. A fome, que tinha sido banida do nosso país, voltou com força e não poderia ser diferente, pois todo o apoio governamental está voltado para os fazendeiros, mineradores e multinacionais. A indústria brasileira agoniza, bem como os pequenos produtores e pequenos comerciantes. E as estrelas da mídia ensinando como economizar gás, cozinhando com lenha, ou como trocar a carne por sopa de ossos. Uma perversidade sem tamanho.
O desemprego – conforme dados do IBGE – está na casa de 14 milhões de brasileiros e mais de seis milhões sequer buscam ocupação, pois já não tem esperança, o que dá uma soma de 20 milhões de seres sem ter como ganhar a vida nesse país. Mas, se formos atrás de outros dados, como os do “Mapa da exploração dos trabalhadores no Brasil”, do Ilaese, que usa outra metodologia, o número de desempregados passa dos 50 milhões. Nesse contexto, aumenta também a violência e o desespero.
A classe média baixa que ainda tinha a chance de juntar um dinheirinho, apostando na poupança, historicamente o único investimento possível, está à deriva também. A caderneta, que valorizava em parco 1% agora só vai render 0,5%, ou seja, absolutamente nada. A inflação de 10% ao ano come tudo o que puder render. Ou seja, só perdas. A classe média, protagonista da ascensão dessa gente que hoje governa o país, pouco se manifesta e quando o faz é para jogar a culpa nos governadores ou nos prefeitos, eximindo o governo federal de qualquer responsabilidade sobre o caos social e econômico. Pagam sete reais o litro de gasolina, quietinhos, os mesmos que gritavam de ódio quando chegou a 2,70 no governo do PT.
A mídia comercial corporativa não divulga, mas o Brasil também vive um de seus maiores fluxos migratórios. Só no ano passado, o número de brasileiros que decidiu sair do país em busca de vida melhor subiu 122%, passando de um milhão e 800 mil pessoas para quatro milhões e 215 mil. Ainda não há números de 2021, mas certamente deve haver mais gente saindo. Uma pesquisa da Datafolha mostrou que pelo menos 70 milhões de brasileiros dariam o fora daqui se pudessem. Gente jovem e qualificada é o perfil de quem quer migrar. O destino de quase 50% dos migrantes, como em toda a América Latina, são os Estados Unidos, mas há muita procura também por Portugal, por conta da língua. Fossem esses números na Venezuela haveria uma série de matérias emocionantes sobre os migrantes, mas, como o responsável por essa debandada é o queridinho da mídia, não há alarde sobre isso. Só notas de rodapé.
Os dramas vividos pelos brasileiros nesse governo atual, quando passam na TV, são apresentados como um raio isolado num céu azul. Não há a explicitação das razões da fome, da miséria, da violência crescente, dos feminicídios – que aumentaram estrondosamente com a ascensão dos adoradores de armas. E é essa gente que agora quer transformar os invasores de terras indígenas – garimpeiros ilegais e os grandes fazendeiros – em “comunidades tradicionais” com o apoio do Congresso Nacional. É uma atrocidade atrás da outra e tudo completamente naturalizado, como se fosse a coisa mais normal do mundo.
No campo da política eleitoral não há novidades. Com o arquivamento das denúncias contra o ex-presidente Lula é ele quem aparece como o candidato preferencial para bater Bolsonaro nas eleições do ano que vem. Mas, isso não significa que a perseguição terminou. Muita coisa pode acontecer até o pleito. A investigação sobre o candidato Ciro Gomes, feita com todo o aparato da Polícia Federal e a espetacularização típica da Lava-Jato agora no mês de dezembro é uma mostra clara de que o estado policial seguirá atuando contra os desafetos do presidente. Com o judiciário dominado, as denúncias de crimes cometidos pelos filhos do presidente e por ele mesmo, caem no vazio, e no campo da justiça nada pode se esperar. Toda essa batalha, infelizmente não tem quase nada a ver com a necessária luta de classes, é um combate interno à classe dominante, visto que nem Ciro nem Lula têm qualquer projeto de transformação radical. Os dois caminham na estrada do liberalismo e a social-democracia é o limite. Apesar de todo esse terror, a esquerda brasileira está derrotada, sem projeto para a nação e sem inserção na maioria da população. Os movimentos sociais mais organizados, como os Sem-Teto e os Sem-Terra resistem, mas tampouco conseguem ultrapassar o particularismo de suas bandeiras.
Vamos nos aproximando do fim do ano praticamente sem qualquer brecha para a esperança de mudança em curto prazo. Temos a nossa frente um país destroçado e uma fatia muito grande de gente alienada, enquanto outra espera que as eleições venham mudar o quadro acreditando que nos bastará um “mais” alguma coisa do tipo: mais democracia, mais justiça, mais educação, mais negros na política, mais mulheres em posição de mando, mais isso, mais aquilo. As questões centrais dos problemas do país, tais como a propriedade, a reforma agrária, o desmandos dos bancos, a questão energética, Petrobras, a justiça, o sistema penal, a dívida externa, não aparecem nos debates, como se a vida fosse se resolver apenas com a inclusão ritualística das chamadas minorias. Tudo acomodadinho dentro dos limites do capital. Falta pegada revolucionária, falta demais.
É certo que ainda há quem observe os tempos criticamente e lute, ainda que sejam poucos. Mas, como sempre foi na história, basta que esse pequeno grupo se mantenha em batalha para que seja possível um amanhã de luz. Ainda assim, será preciso muito trabalho para reconstruir uma estrada pela esquerda.
O próximo ano vem aí e certamente ainda teremos muitos processos de destruição e violência contra o povo brasileiro que se aprofundarão vertiginosamente conforme as eleições forem chegando. Não esperemos uma “festa democrática”. Não. A peleja será encarniçada e o jogo será o mais sujo e violento possível. Tampouco se vislumbram propostas de real transformação. Por isso há que se manter alerta e em luta. Ainda que não haja ação por parte das históricas centrais sindicais, a realidade material da vida haverá de cobrar ação das gentes.
Não há paz para a classe trabalhadora. Mas como diria o utópico Dom Quixote, contra os gigantes, vamos travar uma longa e feroz batalha. Nós o faremos.
Norte e Nordeste voltam a ser esquecidos no faminto Brasil de Bolsonaro