Em Amálgama, novo livro de contos de Rubem Fonseca, o freak show é composto por uma vasta galeria de figuras perturbadas: mãe que joga o bebê aleijado no lixo, o assassino profissional que poupa anões, outro que tem medo de anões, homem feio apreciador de bocetas, o matador de gatos, um que tira a vida de corretores de imóveis e, por aí vai.
No último livro, José, de 2011, Fonseca deixou um pouco de lado a violência e a revolta ao relembrar sua infância em uma capital carioca idílica que não existe mais. Leia post sobre o livro José aqui.
No didático Brasil urgente do Rubão, o ser humano depara-se com um festival de torpezas e vilezas, acorda entorpecido, enxuga as remelas e, no mínimo, reflete “como podemos melhorar esse negócio de sociedade”. Ou não. A escolha é só nossa.
Nos 34 contos curtos de Amálgama, Rubem Fonseca expõe um festival de perversões e insanidade. Ninguém escapa, muito menos eu e você:
“sei que ninguém é inocente, todo mundo cometeu alguma transgressão, alguma maldade, ou crueldade,: se eu fosse religioso diria cometeu algum, ou vários, dos pecados capitais: avareza, gula, inveja, ira, luxúria, orgulho e preguiça”
A violência e os problemas sociais apresentados em seus parágrafos não são criações do artista, e sim parte de seu mundo, de seu universo criativo, servindo-lhe de “inspiração”. Se são feios os seus quadros, a culpa não é dele, mas de todos nós, da sociedade que não soube ainda se liberar de suas mazelas.
O cobrador versão bike
No conto O Ciclista, Rubem Fonseca recicla um de seus textos mais conhecidos, O Cobrador (do livro homônimo, de 1979). No conto anterior, o narrador vinga-se dos exploradores bem integrados ao mercado. Segundo ele, estão lhe “devendo comida, boceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes … Odeio dentistas, comerciantes, advogados, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito”.
Na nova versão, o ciclista atropela os que identifica como maus: “todo dia fico procurando em cima da minha bicicleta alguma pessoa má para punir”.
O trio sexo, violência e miséria (humana e social) permeia boa parte da obra do escritor. Isso não quer dizer que ele as aprove ou desaprove. O autor utiliza sua sensibilidade aguçada para testemunhar e descrever o cenário de maneira particular.
O mundo exterior apresenta-se a cada dia mais cruel e violento e a cidade desumana, o homem (in)comum (ou os Josés, nome de vários protagonistas dos contos de Amálgama) é representado por Fonseca em seu convívio diário com o caos. Ao agir desta forma, Fonseca joga para a sociedade a culpa pela brutalização do mundo. Uma vez que ele não a criou, ela faz parte do mundo e das relações humanas, cabe a ele, o papel de captá-lo sem máscaras, devolvê-lo na sua forma original: violento e desumano.
O próprio escritor explica em uma de suas raríssimas entrevistas para o Jornal da Tarde em 12 de setembro de 1970 como enxerga seu ofício:
“o escritor não é um intelectual, é um historiador da condição humana… é um cara que está aí, vendo, testemunhando as coisas. Acho muito chato o cara que é escritor ditar regras. Ele não precisa disto”
Inovador da linguagem ao adotar uma forma de contar histórias unindo dimensões da linguagem como a jornalística e a cinematográfica, podemos encontrar em muitos de seus contos uma relação direta com um roteiro de cinema. Na entrevista ao JT, afirmou: “antes de aprender a ler, eu já ia muito ao cinema e já fazia filmes na cabeça. A sintaxe cinematográfica, usada na literatura, permite muitos macetes. Quando eu bolo uma história, ao mesmo tempo ela já se realiza na minha cabeça”.
Apesar de sua proximidade como o cinema, a literatura de Rubem Fonseca foi pouco aproveitada pelo cinema. O destaque vai para a adaptação de A Grande Arte pelo jovem diretor Walter Salles Jr, em 1991. Rubem Fonseca adaptou o livro O Matador, de sua amiga e escritora Patrícia Melo, para o cinema. O longa, de 2003, contou com a direção de seu filho, José Henrique Fonseca.
Já na televisão, o romance Agosto, ambientado no fatídico agosto de 1954 em que Vargas mete uma bala na cabeça, virou minissérie na Rede Globo. Na pele do protagonista, o inspetor Mattos, atua o canastrão José Mayer. Impagável está Toni Tornado como chefe da guarda pessoal de Getúlio Vargas, Gregório Fortunato. A HBO produziu recentemente a série Mandrake baseada em dois livros do escritor: A Grande Arte e Mandrake, a Bíblia e a Bengala.
Cinco décadas de literatura
O ano é 1963 (há exatos 50 anos): um executivo da Light de 38 anos lança no Rio de Janeiro seu primeiro livro de contos, “Os Prisioneiros”. Aparentemente, fica difícil acreditar que este episódio iria revolucionar a temática e a narrativa da literatura brasileira da época. Mas Rubem Fonseca chegou carregando uma visão particular do cotidiano das cidades e demonstrando através de uma escrita sem rodeios o homem desesperado inserido em um modo de vida selvagem.
Arredio com a imprensa brasileira, Rubem tem participado de eventos literários no exterior, esse foi em Lima, no Peru:
As cidades em todas as suas contradições sofrem uma dissecação em suas mãos. O escritor Ítalo Calvino, em seu livro As Cidades Invisíveis, nos ajuda a entender a literatura de Fonseca: “as cidades como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam outra coisa”.
José Rubem Fonseca nasceu em Juiz de Fora, em 1925. Residente no Rio de Janeiro e formado em Direito e Administração, talvez tenha nessa sua distância dos meios acadêmicos, literários e jornalísticos, a origem de sua escolha por uma visão particular e pragmática da função literária.
Fugindo do isolamento, Rubem Fonseca saiu da toca no Rio de Janeiro e discursou com veemência para um grupo de operários na inauguração de uma biblioteca no início de outubro:
O crítico Antônio Cândido apelidou a literatura do autor de “Realismo Feroz”. Para Cândido, o realismo de Fonseca realiza-se com mais facilidade na narrativa em primeira pessoa, ou seja, a situação é transmitida pela brutalidade de seu agente, que se identifica com o narrador descartando qualquer interrupção ou contraste crítico entre narrador e matéria narrada.
A literatura de Rubem Fonseca é um testemunho de vida e não virtuosismo literário. Propondo-se ao papel de historiador da condição humana, Fonseca é um arguto observador do cotidiano. Seu papel é documentar,registrar a vida em todo a sua magnitude. Quando recusa “os guaranis” e”os sertões”, deixa bem claro que é na cidade, nas suas luzes e burburinho frequente dos carros, que a vida acontece. Essa é a sua condição e é daí que nasce a sua literatura.