Alfredinho do Bip Bip – As noites de Pinheiros, tão compridas ultimamente quanto seus quarteirões em subida, demorados de percorrer, têm sido testemunhas da minha saudade do Alfredo.
Já vai fazer um mês que morreu o Alfredo, o Alfredinho do Bip Bip, o Alfredo Jacinto Melo, “Melo com éle só, por favor”, como ele avisava.
Alfredinho foi o cara que, há uns 25 anos, decidiu ser meu pai.
“Meu índio”, ele me cumprimentava sempre assim, enquanto segurava meu rosto com as duas mãos pra me dar dois beijos nas bochechas.
O meu amigo beijava todo mundo – homem, mulher, criança, velho, moço, trans, preto, branco, estrangeiro e também guaranis vira-latas que nem eu.
Todas as noites, quando chega “a hora de ligar pro Alfredo”, por volta de umas 22h, eu, encostado no balcão do boteco Madadayo, aqui em Pinheiros, sinto uma saudade danada dele.
Era nesse horário que eu sacava o celular do bolso e, automaticamente, teclava o número do Bip Bip.
Desde que o Alfredinho se foi, no sábado de carnaval, eu penso que, daqui a algum tempo, vai ser difícil fazer alguém acreditar que ele existiu.
Porque a existência do meu amigo-pai-irmão-filho sempre foi mesmo difícil de se fazer crer.
Como explicar que, até ainda há pouco, existia um sujeito tão diferente de todo mundo?
Alfredinho era mesmo o melhor de nós todos. Era mesmo tudo o que já se disse dele – e era também o que eu, logo eu, o “filho índio”, ainda não consegui escrever aqui, travado pelo vazio da saudade desde o sábado de carnaval deste 2019 de tantas notícias tristes enumeradas.
Nunca conheci um cara tão justo, tão solidário, tão generoso, tão divertidamente ranzinza, tão sonhador, tão especial, tão crente nos mistérios do Rosário de Nossa Senhora e nos talentos de um finado técnico de futebol chamado Tim e nas belezas do Garrincha e na inocência do Lula e na ressurreição do PT e na vida eterna, amém, quanto ele.
Alfredo amava muito a vida e se borrava de medo de morrer. Se houvesse qualquer imprevisto na saúde dele, fazia pra mim e outros amigos o mesmo pedido: “Neném, reze uma ave-maria pro seu paizinho”.
Eu rezava.
Não consegui rezar antes do último suspiro dele, porque quando cheguei ao apartamento da Rua Souza Lima, em Copacabana, o meu amigo já não respirava mais.
No mesmo apartamento de tantas outras visitas felizes, o meu pai-filho-irmão estava estirado, já sem vida, na cadeira de astronauta dele.
Estávamos ali alguns dos amigos mais queridos do Alfredinho, enquanto outros tão queridos quanto seguravam as pontas no Bip, onde o samba fervia, como ele gostaria que se desse.
O choro incontido de quem ia chegando renovava as lágrimas gerais, reacendia a certeza da interrupção geral do carnaval que consagraria a Mangueira e o samba lindo da Manu e de seus parceiros – e que felicidade teria sentido o Alfredinho com a vitória da Mangueira e com toda a glória merecida do poema-enredo das “Marias, Mahins, Marielles, Malês”, cantado bonitamente pela Sapucaí inteirinha, inteirinha.
Com o nosso-vosso-meu Alfredo estendido ali, naquela cadeira de astronauta dele, começaram a brotar cervejas e pacotes de amendoim, e improvisamos o que ele também teria feito – um velório informal, cheio de um sentimento de tristeza alegre, difícil de explicar.
Rezamos o pai-nosso e a ave-maria das crenças tão sinceras dele, cantamos o hino do Botafogo das paixões imemoriais dele, esticamos o carpimento e a cerveja e o amendoim, até que chegou o agente funerário, lá pelas onze da noite, pra interromper nosso folguedo alegre-triste.
Atendidas as demandas do moço da funerária – o atestado de óbito, a última muda de roupa pra vestir o nosso amigo-pai-irmão-filho -, lá fomos nós carregar o corpo do Alfredinho até o elevador, a caminho do carro fúnebre, estacionado na garagem do prédio.
Éramos seis com o Alfredo mal ajeitado no colo, enrolado numa colcha, cinco amigos mais o moço da funerária, num elevador pequeno, que mal comportaria quatro, se muito.
O elevador, com os sete a bordo – nós e o corpo do Alfredinho – , parou dois metros abaixo, se muito, e ali ficamos por uma hora e meia, à espera do resgate do Corpo de Bombeiros.
Parece esquisito. Mas como foi bom estender o convívio e passar mais uma hora e meia com meu amigo ali.
O moço da funerária foi o único assustado. Até ligação de vídeo fez pra família. Só se acalmou quando soube que o morto era famoso.
Alfredo foi capaz disso depois de morto, ficar trancado num elevador lotado com alguns dos seus muitos amigos.
Também foi capaz de ser, talvez, o único morto velado num botequim em toda a história da humanidade, e em pleno carnaval, embalado por uma orquestra de metais (a do Rancho Flor do Sereno, fundado por ele) e por uma roda de samba, numa cena que um desavisado achou se tratar de uma brincadeira:
– O cara no caixão tá se fingindo de morto? Isso é um bloco? A fantasia dele é de defunto?
Isso existiu, é verdade, mas vai ser difícil alguém crer daqui a algum tempo.
Como o improvável personagem de “A morte e a morte de Quincas Berro D’água”, o fabuloso romance de Jorge Amado, meu amigo foi velado desse jeito.
O enterro, no Cemitério de São João Batista, também virou bloco – e o caixão foi pra sepultura todo carimbado de adesivos de “Lula livre”.
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Uma semana depois, a missa de sétimo dia do meu pai-irmão-filho, rezada pelo padre Zé Roberto, na Paróquia da Ressurreição, que ele frequentava, no Arpoador, transformou-se em roda de samba.
(Na saída da cerimônia, eu e Adalgisa fomos assaltados na Praia de Ipanema por dois ladrões armados com faca. Queria ter contado ao Alfredo que aqueles dois jovens assaltantes, bem fuleiros, coitados, talvez já tivessem participado da ceia de Natal oferecida pelo meu amigo no Bip Bip todo 24 de dezembro: “Não senti raiva deles, Neném, só medo”, eu teria dito).
(Pode haver quem não saiba: Alfredinho chamava todos nós de “Neném”, e por nós todos assim era chamado, “Neném”).
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As noites de Pinheiros, tão compridas ultimamente quanto seus quarteirões em subida, demorados de percorrer, têm sido testemunhas da minha saudade do Alfredo.
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