por Elaine Tavares
Tarde de quinta-feira. O posto da Caixa Econômica Federal, um dos bancos públicos brasileiros, está lotado. São quase 100 pessoas sentadas nos bancos azuis, com olhar perdido no vazio, esperando. Antes de entrar, precisam passar pelo constrangimento de esvaziar suas bolsas ou colocá-las num escaninho que, mesmo na agência central, parece coisa do século passado. Leva-se pelos menos uns 10 minutos no trâmite de pegar a chave com um garoto que distribui senhas, abrir o cadeado que fecha uma corrente na porta do armário. Coisa bárbara. Lá dentro o ambiente é tóxico. Rostos ansiosos e tristes. Por ter deestar ali pagando contas, e por passar pela absurda espera. Como sempre, há poucos caixas, fruto do sistemático desmonte das empresas estatais brasileiras. Também os trabalhadores têm o rosto pesado, superexplorados que são. A tensão ali dentro é concreta, quase se pode pegar com a mão.
Naquela tarde, no meio das cadeiras, um gurizinho de uns três anos, corria, brincando entre as cadeiras. Então, no meio do corredor, decidiu parar, abriu os bracinhos, apertou os punhos e fez cara de Hulk, rugindo, brabo. Sua manifestação espontânea de raiva por estar ali há tanto tempo, levou todo mundo ao riso. Foi um átimo de descontração. Poderia ter sido o catalisador para que toda aquela gente se levantasse e quebrasse tudo, dando vazão ao ódio por estar sempre sendo espezinhado nesse mundo no qual o capital dita as regras e mantém as pessoas escravizadas. Mas, não. Houve o riso, o balançar de cabeça e os olhos voltaram ao vazio. Há que pagar as contas. Há que esperar.
Esse tem sido o comportamento de boa parte dos brasileiros nos últimos tempos. Um resignado cumprir das tarefas cotidianas, enquanto o Brasil vai se esfacelando, com as riquezas sendo entregues e os direitos trabalhistas exterminados. Um processo de destruição tamanho que exigiria uma violenta reação. Mas, ainda não aconteceu. Há resistências pontuais, uma greve por salário aqui, outra ali. Reações particulares, algumas muito fortes, mas sem conexão com o todo.
A reforma trabalhista aprovada pelo Congresso Nacional destruiu 60 anos de luta, pois praticamente todos os direitos conquistados a duras penas foram para o ralo. Ter a carteira assinada e, com isso, uma série de garantias trabalhistas já é coisa do passado. O tempo agora é do trabalhador por hora, por projeto, o famoso “self-made man”, aquele que se faz a si mesmo, o empreendedor individual. O empresário de si mesmo. Parece coisa bonita e o nome em inglês deixa ainda mais atrativo. “Só não se dá bem quem não se esforça”, dizem os patrões, agora livres de encargos e deveres, prontos para acumularem mais e mais. Viva o trabalho intermitente, no qual o trabalhador terá mais tempo para si trabalhando por períodos curtos. Como se o trabalhador pudesse existir sem o trabalho. Não no mundo capitalista. Nesse mundo o trabalhador só tem a força de trabalho para vender e se não a vende, não come, não mora, não tem saúde nem educação. Ainda assim, há quem aplauda a reforma.
Os números, ah os números, dizem que o emprego aumentou. Mas não dizem que são precarizados, que são por prazo curto, que são por salários mais baixos. O desemprego estrutural se aprofunda e logo, logo, seus efeitos se farão sentir com mais força.
Não bastasse isso a Câmara dos Deputados segue atuando rápida e livremente a favor de seus patrões: os latifundiários, as transnacionais, os bancos. Dia após dia aprovam novas leis que garantem mais lucros aos seus chefes e aumentam o abismo entre pobres e ricos no Brasil. Dane-se a pátria. Está a um passo de ser aprovada a desregulamentação dos agrotóxicos, que envenenarão ainda mais a comida da maioria do povo. Poderão ser vendidos sem fiscalização e, inclusive, marcas que estão proibidas em praticamente todo o mundo.
Também aprovaram a privatização da Embraer, empresa brasileira que não apenas fabrica aviões de qualidade como é também responsável pela segurança aérea do país. Ou seja, os dados referentes à segurança do espaço aéreo brasileiro agora pertencerão aos Estados Unidos, através da Boeing, empresa que comprou a Embraer. Há quem ache muito legal ser colônia dos EUA, mas seria bom dar uma espiada na situação do Afeganistão, Iraque, Somália, Porto Rico, Colômbia, para ver quem realmente ganha com o “protetorado estadunidense”. Não são os trabalhadores. Não são mesmo.
Na semana passada, os deputados aprovaram também a privatização da distribuição de energia, mais uma fatia da Eletrobras. Com isso, entregam para os estrangeiros ou para a elite nacional esse importante filão que é a energia elétrica. Hoje, com a distribuição sendo pública, mesmo as comunidades mais longínquas tem garantia de luz, pois ela é um direito e o estado provêm. Mas, privatizada a distribuição, estender linhas não será mais direito e sim espaço de consumo. Ou paga, ou não tem. E, da mesma forma, a conta da luz deverá ter uma alta significativa, pois as empresas cobrarão pelos caminhos por onde a energia vai fluir.
No âmbito do executivo também se avolumam as decisões contra os trabalhadores, a maioria da população. Enxuga-se tudo o que é público, desmontam-se as empresas estatais, arrocham-se os trabalhadores. No campo da educação a destruição já vem de um bom tempo. A reforma do ensino médio, que levou os secundaristas às ruas, passou, e hoje as coisas já estão acomodadas. As escolas se apequenam, física e culturalmente. E o espectro da perseguição e da delação ronda, destruindo professores críticos e constituindo uma massa facistificada. O professor virou vilão e apanha na cara. A boa educação ficou para os que tem dinheiro para pagar. Aos pobres, as batatas.
Na saúde, o terror segue seu curso, cada vez mais forte, com o desmonte sistemático do SUS e com as propostas de sua destruição. Acabou a Farmácia Popular, diminuíram-se os recursos e o povo que arque com o custo dos remédios, para engordar a conta da farmacêuticas, tratando das doenças que são criadas pelos venenos das transnacionais de alimentação. Tudo articuladinho para manter os trabalhadores no limite entre a vida e a morte, para que não encontrem forças para rebelarem-se. Crescem os Planos de Saúde privados, atirando-se sobre as angústias das gentes e surgem como capim os chamados “espaços populares de medicina”, nos quais as consultas variam de 80 a cem reais, ficando “acessíveis” para a população. E as pessoas se agarram a isso porque os espaços públicos vão sendo destruídos, justamente para jogá-los aos tubarões privados. Saúde é mercadoria.
Na segurança, segue o caveirão da morte, passando pelas comunidades de periferia, ceifando as vidas dos trabalhadores, particularmente a das crianças e jovens negros. Não há limites. Meninos que seguem para a escola são mortos preventivamente porque “um dia poderão se tornar criminosos”. Meninos negros. Meninas são baleadas na porta de casa, na padaria, na frente da escola. E tudo bem. São meninas negras. “Que poderão fazer depois que crescerem?” A elite, a classe média justificam tudo. “Algo de mal irão fazer”. Matam porque temem a revolta dos desvalidos. E condenam os trabalhadores, a maioria, a eterna guerra entre si.
E assim vamos indo, ladeira abaixo, perdendo cada dia um direito, esfacelando o tecido social, vendo o cotidiano se transformar num aterrorizante “Mad Max”, o mundo distópico da violência, do individualismo, do terror.
Na televisão das massas, o economista Ricardo Amorim no programa Manhattam Connection teve a cara de pau de dizer que em Cuba “só” o que funciona é a saúde, educação e segurança, querendo tripudiar da forma de governo que ali existe desde a revolução de 1959. O “só” dele é o tudo que uma população pode querer de dignidade. Educação de qualidade para toda a gente, saúde garantida para toda a gente, e o direito de andar pelas cidades, pelos campos, pelos caminhos, em paz, sem o terror de ser roubado, assassinado, violentado.
O “só” de Cuba deveria ser nossa bússola. E para lá deveríamos caminhar. Em luta. Porque se são os trabalhadores que tudo produzem, se são eles os responsáveis pelas riquezas geradas, a tudo devem ter direito.
http://www.zonacurva.com.br/a-cronica-desigualdade-brasileira/