O episódio Damares Alves envolvendo supostas violências sexuais contra crianças na ilha de Marajó mostrou como o jornalismo e a imprensa brasileira como um todo estão desnorteados diante da normalização da mentira como ferramenta eleitoral.
As declarações da ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos se mostraram tão fantasticamente inverossímeis que a maior parte do público leitor de jornais não se preocupou com a credibilidade da notícia passando a dar mais atenção às reais intenções de Damares. Ficou claro que a pastora evangélica, dublê de militante política, pretendia gerar pânico entre eleitores indecisos às vésperas do segundo turno da votação para presidente da República.
A leviandade deliberada com que políticos de extrema direita passaram a incorporar mentiras ao seu discurso eleitoral coloca a imprensa diante de um complicado dilema profissional: ignorar a falsificação, distorção e omissão de informações para evitar que seus promotores atinjam os objetivos pretendidos; ou promover a checagem de todas as notícias sob suspeita, um processo lento, complexo e capaz de gerar novas polêmicas eleitorais.
Infelizmente, poucos veículos de comunicação fizeram esta escolha de forma clara porque foram condicionados pela velha regra de que é preciso ouvir os dois lados para demonstrar imparcialidade. Uma isenção que perde sua razão de ser quando a mentira é transformada em ferramenta eleitoral. Nestas circunstâncias, quando o uso de fatos, dados e declarações inverídicas se torna normal em disputas políticas, o jornalismo não pode ser neutro porque isto contraria sua missão fundamental que é a de levar aos cidadãos informações que os ajudem a evitar escolhas equivocadas.
A regra da imprensa de ouvir os dois lados é válida quando a divergência de opiniões e posicionamentos ocorre em questões complexas onde a diversidade de percepções é um fator importante para o esclarecimento do público. Quando a divergência envolve um fato, dado ou afirmação notoriamente falsa ou mentirosa a preocupação com a veracidade é muito mais importante do que a imparcialidade por conta de possíveis consequências irremediáveis. Logo, a imprensa não deveria dar espaço ao mentiroso, ou mentirosa, para promover algo que vai causar dano ao conjunto da sociedade.
Um desafio enorme
O jornalismo sempre tratou a mentira como uma exceção que deve ser recriminada e desconstruída através da verificação de confiabilidade dos dados e fatos sob suspeita. Mas quando a falsificação, distorção e descontextualização são transformados em rotina por um candidato, a checagem de todas as mentiras fica virtualmente impossível por conta do tempo e da exatidão exigidos na verificação. Tome-se o exemplo dos debates entre candidatos presidenciais. O ritmo e o volume de informações que, em tese, deveriam ser conferidas, implicaria a interrupção do debate quase a cada minuto, sem contar o tempo consumido na checagem dos dados apresentados.
Mas não é só isto. A normalização da mentira em períodos eleitorais muda a natureza das narrativas políticas. O jornalismo ainda está apegado a uma abordagem analítica dos fatos, dados e eventos mencionados em pronunciamentos e entrevistas dos candidatos. Desapareceu o constrangimento de usar falsidades no discurso eleitoral porque o mais importante é como elas influem na percepção das pessoas, principalmente as menos informadas ou as mais contaminadas pelo passionalismo e xenofobia. Por isto, os candidatos de extrema direita deixaram de ter qualquer escrúpulo em mentir porque o que importa não é a confiabilidade do que é dito ou escrito, mas sim como o eleitor vai incorporar a mentira à sua visão de mundo e sua decisão de voto.
Trata-se de uma realidade profissional ainda pouco explorada pelo jornalismo porque o extremismo de direita, como protagonista eleitoral significativo, também é um fenômeno novo. Pela natureza antidemocrática deste movimento político, não são aplicáveis as regras criadas pelo jornalismo condicionadas pelo modelo democrático. Os profissionais e pesquisadores do jornalismo não têm assim alternativa senão partir do estudo da realidade concreta, para descobrir como e porque a mentira consegue contaminar tanta gente. Só com estes dados será possível começar a pensar em estratégias editoriais baseadas na realidade e não em concepções herdadas de outro contexto político. (ver artigo As Vacilações do Jornalismo na cobertura das Ameaças à Democracia )
A opção pela pesquisa do fenômeno do crescimento da extrema direita em várias partes do mundo é defendida enfaticamente por Margareth Sullivan, ex-ombudsman do The New York Times e hoje colunista do The Washington Post. Ela diz que é essencial se preocupar mais com a contextualização mais ampla possível das declarações e promessas de candidatos, especialmente os de extrema direita, do que com a pressa em publicar a notícia.