Zona Curva

A dívida grega é justa?

por Fernando do Valle

Dívida grega – O mercado financeiro mundial baseia-se no princípio do endividamento descontrolado dos países para, em seguida, sugá-los pouco a pouco em eternos pagamentos de juros. Para isso, o capital financeiro conta com políticos que trabalham em prol de seus interesses nos governos em um sistema antidemocrático e desregulamentado. Depois que determinado país já estiver com a corda no pescoço e tiver a ousadia em desobedecer ao mercado, não arcando com acordos, muitos deles espúrios, ganhará nota baixa das agências de risco como um aluno malcriado. A nota baixa indica que aquele país não receberá mais investimentos privados e passará a ser tratado como um pária pelos bancos, governos alinhados ao mercado e organismos financeiros internacionais.

Talvez essa história comece a mudar com a vitória do NÃO (oxi, em grego) no plebiscito do último domingo (dia 5 de julho) na Grécia, que demonstrou como o poder do capital financeiro pode (e deve) ser desafiado. Mais de 61% dos gregos não aceitaram mais a austeridade como, por exemplo, metas fiscais exigidas pelos credores gregos, que segundo o primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, levaria a uma “maior desregulamentação do mercado de trabalho, cortes nas pensões e reduções mais drásticas nos salários do setor público”. Medidas que aprofundariam ainda mais a crise em um país em que o PIB recuou 25% nos últimos 7 anos, 40% das crianças vivem abaixo da linha da pobreza e cerca da metade dos jovens estão desempregados.

referendo grego oxi europa
Gregos celebram a vitória do oxi (não, em grego) (Fonte: RT)

Em entrevista recente à TV Brasil, a professora Maria Lucia Fatorelli, auditora fiscal da Receita Federal e coordenadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida, denuncia que o empréstimo de 316 bilhões de dólares recebido pela Grécia por intermédio da Troika (Banco Central Europeu, FMI e Comissão Europeia) é formado por “papéis podres”, títulos financeiros de baixo valor de bancos falidos. Ela fez parte de uma comissão que auditou a dívida pública grega e entregou um relatório preliminar no dia 17 de junho ao parlamento daquele país.

Segundo ela, o texto de 700 páginas do acordo de 2010 contém mecanismos financeiros enigmáticos que escondem a jogada financeira da Troika. Fatorelli participou também da auditoria da dívida do Equador, que extinguiu parte considerável da dívida do país, que se mostrou não fundamentada. Leia o texto em que Fatorelli detalha os problemas com a dívida grega.

Em entrevista à revista Carta Capital, Fatorelli resume o que foi feito na Grécia: “mecanismos financeiros, coisas que não tinham nada ver com dívida, tudo foi empurrado para as estatísticas da dívida. Tudo quanto é derivativo, tudo quanto é garantia do Estado, os tais CDS [Credit Default Swap – espécie de seguro contra calotes], essa parafernália toda desse mundo capitalista ‘financeirizado’. Tudo isso, de uma hora para outra, pode virar dívida pública. O que é a auditoria? É desmascarar o esquema. É mostrar o que realmente é dívida e o que é essa farra do mercado financeiro”.

Assista a entrevista à TV Brasil:

O documentário Goldman Sachs, o banco que dirige o mundo, explica outra artimanha financeira realizada na Grécia, desta vez pelo banco Goldman Sachs, e com a anuência do governo grego da época. Para que o país pudesse integrar a União Europeia a partir de janeiro de 2001, sua dívida foi maquiada já que o Tratado de Maastricht, da União Europeia, exigia que nenhum membro da zona do euro podia ter uma dívida superior a 60% do PIB, da Grécia, era 103%.

Em junho de 2000, para ocultar o tamanho real da dívida grega, o Goldman Sachs transportou a dívida grega de uma moeda para outra. A transação consistiu em mudar a dívida que estava contabilizada em dólares e em yens para euros, mas com base em uma taxa de câmbio fictícia. O banco de negócios norte-americano ganhou na operação 600 milhões de euros. Hoje a dívida grega é de 175% de seu PIB.

Assista ao documentário e saiba como o banco Goldman Sachs opera contra a democracia em vários países. 

O ministro grego das Finanças, Yanis Varoufakis, em seu estilo anti-Wall Street com sua moto e suas jaquetas de couro, afirmou que a vitória do NÃO no referendo do dia 5 de julho prova que “uma pequena nação europeia levantou-se contra a servidão da dívida”.

Varoufakis deixou o governo para facilitar as futuras negociações após a vitória do NÃO. Segundo ele, “alguns ministros dentro do eurogrupo têm preferência pela minha ausência nas negociações”. E completou: “a ira dos credores é trunfo que ostento com orgulho”.

O ministro Varoufakis deixou o governo após o referendo (fonte: Reuters)

Junto com outros economistas, o autor do livro “O Capital no século XXI”, o  francês Thomas Piketty divulgou ontem uma carta  de apoio à Grécia em que lembra como a dívida alemã foi perdoada após a Segunda Guerra Mundial e fez um apelo a Angela Merkel, líder da Alemanha, por medidas corajosas e generosas nesse momento importante da história da Europa. Merkel simbolizou a pressão dos credores ao governo grego.

Segundo a carta, “na década de 1950, a Europa foi fundada sobre o perdão de dívidas do passado, em especial a da Alemanha, o que contribuiu para o crescimento econômico do pós-guerra e da paz”. Em entrevista publicada no site Outras Palavras , Piketty lembra que outros países europeus já estiveram endividados e tiveram seus débitos perdoados ou negociados:

“O passado da Alemanha quanto a [pagar dívidas] deveria ser de importante significado para os alemães hoje. Olhe para a história da dívida nacional: Reino Unido, Alemanha e França estiveram todos, um dia, na situação da Grécia de hoje – na verdade, muito mais endividados. A primeira lição que podemos tirar da história das dívidas governamentais é que não estamos diante de um problema inédito. Tem havido muitos modos de pagar as dívidas, e não apenas uma, isso que Berlim e Paris gostariam que os gregos acreditassem.”

A vitória do NÃO no referendo é somente o primeiro passo em busca de soluções para a grave crise grega. O que acontece na Europa neste momento mostra como a democracia pode colocar os interesses da maioria novamente no jogo político.

A população grega saiu às ruas para celebrar o NÃO (fonte: RT)
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