por Almandrade
A produção cultural e o planejamento urbano que presenciamos e consumimos refletem a época de políticos, burocratas e empresários à frente dos destinos da cidade. Se o planejamento foi levado à condição de aspirina para resolver um mal incurável (a desordem urbana), a cultura foi transformada em divertimento descartável para uma população urbana que corre desesperada atrás de um momento de ócio. A revolução industrial criou uma obsessão pelo progresso, mas, em relação ao mundo do pensamento, o homem pouco avançou, ao contrário, reduziu sua capacidade de reflexão, criando um tipo de sociedade que privilegia o consumo e despreza as ideias. Paradoxalmente, o aumento da informação resultou na diminuição do repertório.
A cidade moderna, administrada pela economia e por legislações que nos são impostas, é um supermercado com um estoque de produtos e tecnologias que precisa ser comercializado para gerar emprego, renda e desenvolvimento econômico. Não é mais o espaço da solidariedade, mas um campo de concentração de empregados e desempregados, de guetos, de proprietários isolados, com mínimas possibilidades de trocas de experiências entre indivíduos de grupos diferentes. É a cultura dos condomínios fechados, das praças privatizadas, do paraíso dos shoppings. Até a arte deixou de ser um “exercício de liberdade” como imaginava o crítico Mário Pedrosa e passou a ser julgada como um produto ou espetáculo do mercado cultural.
A prática de um conhecimento, quando subordinada aos interesses que negam o princípio desse conhecimento e o bem comum, é também a negação da cidadania. A arquitetura, a arte, o desenho da cidade e dos objetos deixaram de ser dispositivos de acomodação e satisfação do homem com o meio ambiente onde vive; e passaram a ser o exercício burocrático de desenhar ou estetizar o território, de adaptar a cidade para a razão perversa de uma sociedade que nega os valores e a ética em nome do crescimento econômico e da concentração de renda que marcam o cotidiano da vida moderna. Na produção da cidade, a atividade intelectual foi excluída e substituída por uma relação de trocas e favores. Nesse ambiente urbano, com qualidade de vida discutível e um estado de regressão cultural, a festa, ou melhor, o espetáculo, é sempre o alvo das denominadas políticas culturais que desconhecem o processo do fazer cultural e as questões mais evidentes, como a diversidade, a conservação e a transformação das linguagens artísticas e suas leituras.
O que os administradores da cultura esquecem algumas vezes é que as artes têm suas próprias materialidades, não são campos de pouso para outras políticas, nem mesmo as ditas culturais que ignoram problemas acerca da tradição, do moderno e do contemporâneo, além da origem, da história dessas linguagens e da lógica de suas revoluções. Enquanto artistas, arquitetos, intelectuais, produtores de bens artísticos, mesmo excluídos do processo de decisão, temos o compromisso de resgatar a reflexão sobre as práticas culturais e a imagem da cidade. Temos uma responsabilidade, neste momento, que é tomar uma decisão enquanto é possível para o futuro de nossas cidades, antes que a economia o determine para nós. Lutemos contra uma cidade sem poesia, sem memória e sem história, um abismo de simulacros e referências artificiais.
Uma cidade tem sentido quando tem uma história e uma identidade. Não podemos imaginar o futuro sem descortinar a memória e contemplar o patrimônio nela guardado. A cultura na qual estamos mergulhados é responsável por essa cidade que estamos edificando, da especulação imobiliária, da disputa do metro quadrado, como se o espaço urbano fosse apenas uma mercadoria e não o lugar da convivência e da liberdade. Isto pode significar o fim da concepção de cidade que determinou sua origem.
A universidade, uma instituição por excelência da cidade, vem se afastando de seus princípios fundamentais para atender às demandas do mercado de trabalho em detrimento da especulação do pensamento. Sua função não era formar mão-de-obra especializada, mas estimular a reflexão, muitas vezes sem mercado de trabalho, sem a qual a vida cultural de uma cidade entra em declínio.
A cidade surgiu como o lugar do encontro com o outro, do diálogo. Essa cultura das comunidades restritas, do gozo sem desejo, do jogo de interesses privados, onde só os semelhantes interagem, fez com que ninguém se sentisse comprometido com a preservação do espaço físico, do meio ambiente, dos valores, da história, dos bens coletivos. A competição, em lugar da cooperação, reduziu o sujeito urbano a força de trabalho e consumidor de produtos, e inventou uma cidade que não fala mais de nossos afetos e paixões. Mas se o sonho ainda não acabou, temos imaginação e raciocínio, vamos alimentar a vontade de reinventar a cidade e suas instituições para recuperar o humano, a comunicação, a solidariedade e o encontro das diferenças.
Texto do livro “Escritos sobre a arte” de Almandrade.