por Albenísio Fonseca
A transformação da realidade e seu total controle é o tema principal de 1984, o livro de George Orwell, escrito em 1948. A ação se passa em Oceania, um fictício bloco de países que, simulando uma democracia, vive sob o totalitarismo desde que o IngSoc (o Partido) chegou ao poder sob a batuta do onipresente Grande Irmão (Big Brother). O controle total é a norma sobre a população, numa política de subordinação implacável.
Inspirado na opressão dos regimes totalitários das décadas de 30 e 40 do século XX, o livro (escrito na terceira pessoa) não se resume a apenas criticar o stalinismo e o nazismo, mas toda a submissão da sociedade, a conversão do indivíduo em peça para servir ao estado ou ao mercado, através do controle sobre o pensamento, a redução do idioma e descartada toda e qualquer noção de esperança.
O personagem principal do livro, Winston Smith, membro do partido externo, funcionário do Ministério da Verdade, tem como função apagar o passado, reescrever e alterar dados de acordo com o interesse do Partido. Mas Winston passa a refletir e questionar a opressão exercida sobre os cidadãos. Na Oceania, se alguém pensasse diferente, cometia crimidéia (crime de ideia em novilíngua) e fatalmente seria capturado pela Polícia do Pensamento, torturado e morto ou coisa pior. Desaparecia.
Winston não sabia de qual modo, mas precisava extravasar o que sentia. Como não seria seguro comentar suas angústias e sem dispor de respostas satisfatórias, compra clandestinamente um bloco e um lápis (artigos de venda proibida, adquiridos num antiquário).
Para verbalizar seus sentimentos, Winston atualiza seu diário usando o canto “cego” do apartamento. Onde a teletela – o olhar do Grande Irmão, a vigilância do Big Brother – não pudesse vê-lo.
A primeira frase que Winston escreve é justificável e, há de se convir, permanece atual: Abaixo o Big Brother!
Winston, uma representação do homem comum – protótipo do anti-herói – também tinha dificuldades para lembrar do passado e da vida pré-revolucionária. Os esforços da propaganda do Partido com números e “duplipensamento” tornavam a tarefa quase impossível já que o futuro, presente e passado eram controlados pelo Partido.
No Miniver (Ministério da Verdade), ele alterava dados e jogava no incinerador (Buraco da Memória) os originais de tudo que pudesse contradizer as verdades do Partido.
Metáfora dos anos pós-guerra com reflexos na contemporaneidade, a função de Winston é uma crítica à fabricação da verdade pela mídia, à impossibilidade de acesso ao conhecimento e à ascensão e queda de ídolos de acordo com alguns interesses.
Seu envolvimento amoroso com Julia também constitui uma transgressão. As normas do Partido deixavam claro que membros da organização, principalmente dos sexos opostos, não deviam se comunicar a não ser a respeito de trabalho. O sexo só é permitido para a reprodução.
O Partido informa: a ração de chocolate semanal aumenta para 20g para cada cidadão. O trabalho de Winston consistia em coletar todos os dados antigos que descreviam que a ração antiga era de 30g e substituí-los pela versão oficial.
A população agradece ao Grande Irmão pelo aumento devido aos propósitos midiáticos do poder. E extravasa no lazer dos “dois minutos de ódio” um medonho êxtase de medo e vingança contra os “traidores”, a desejar que outros morram, numa explícita associação à perseguição de Stálin a Trotsky. A Oceania vive em guerra permanente contra outros dois blocos, a Eurásia e a Lestásia.
Sem perceber uma câmera oculta, Winston é preso pela polícia do pensamento ao expressar sua constatação sobre a plebe, “nós somos os mortos”. O amigo O’brien converte-se no seu torturador. Solto, rebaixado a um subcomitê, o pretenso revolucionário que acreditava na Fraternidade termina seus dias jogando xadrez sozinho no ambiente malvisto do Castanheira Café. Como se lobotomizado – à semelhança de Alex, o anti-herói de A Laranja Mecânica (livro de Anthony Burgess, publicado em 1962 e levado cinema por Stanley Kubrick, em 1971), submetido a uma “terapia experimental de aversão” – Winston “aprende” a amar o Grande Irmão.
Antes, escreveria um extraordinário paradoxo em seu diário: “Eles só se libertarão quando se revoltarem. Mas eles só se revoltarão quando se libertarem”.
Afinal, somente seria possível concordar com o ficcionista David Bryn, para quem “a forma mais poderosa de ficção não está num livro, num filme ou numa história que preveja o futuro, mas numa história que impeça o futuro”, na medida em que tivéssemos escapado ilesos ao vaticínio contido neste magnífico livro.
Publicado originalmente no Blog do Albenísio.